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Segunda-feira, 23/2/2015 Bibliotecários Ricardo de Mattos No dia oito de dezembro de 2014 estreou no canal Universal uma nova série de televisão intitulada The Librarians - Bibliotecários. A primeira temporada, composta por cerca de dez capítulos, estendeu-se de dezembro e janeiro deste ano. Algo nas chamadas e resenhas jornalísticas remeteu-nos ao Libri di Lucca, livro de Mikkel Birkegaard ao qual já tivemos oportunidade de dedicar uma coluna. Nada mais distante. A temporada começou com o bibliotecário "chefe" Flynn Carsen, interpretado por Noah Wyle, reunindo uma equipe de auxiliares, os quais deixou sob a guarda da comandante Eve Baird - na pele de Rebecca Romijn. Flynn pouco apareceu. Logo no primeiro episódio A Biblioteca foi enviada criminosamente para outra dimensão e coube-lhe recuperá-la. Restou aos três auxiliares, à comandante e ao zelador Jenkins (John Larroquette) um anexo no qual se reuniam e se informavam sobre casos a serem resolvidos. Este já foi um ponto decepcionante para bibliófilos e bibliomaníacos, pois aguardávamos cenário que remetesse ao aconchego de uma livraria, e justamente os livros que menos aparecem. A biblioteca dos filmes de Harry Porter é mais satisfatória. Quem são os auxiliares de Flynn? Jacob Stone - interpretado por Christian Kane -, Cassandra Cillian - por Lindy Booth -, e Ezequiel Jones - por John Kim. Jacob é especialista em História da Arte e Arquitetura e compõe a equipe de bibliotecários escondido de sua família, da qual também esconde sua inteligência altíssima. Até ser chamado para a equipe trabalhava em uma refinaria de petróleo. Há uma tensão interna entre ele e Cassandra decorrente do mau passo dado por ela no primeiro episódio. Cassandra é um gênio da Matemática, portadora de tumor cerebral e projeta no espaço diante de si os cálculos que faz. Ezequiel é o malandro do grupo, sugerindo que a inteligência ampla pode ser engraxada com malícia. Ficou por sua conta toda trapaça útil ao trabalho desenvolvido em cada episódio. Caro leitor, quem escreve estas mal traçadas linhas é alguém que, adolescente, comprou uma revista Playboy porque o ensaio de capa seria realizado numa biblioteca. Sentado no sofá com as pernas cobertas na tentativa de impedir acesso aos pernilongos, no correr da série nossa expectativa foi decrescente e descrente ficamos de encontrar maior tutano. Quem já presenciou encenação amadora de adolescentes em teatro escolar não precisará esperar mais do que isto do seriado. A comandante Baird surpreendia-se com as perguntas e afirmações que precisava fazer no desenrolar da trama, e muitas vezes parecia que quem procurava saber o que estava fazendo ali era a própria Rebecca Romijn. Até o locutor das chamadas pareceu constrangido. Num dos episódios, personagens de contos de fadas ganharam vida e foram às ruas. De repente, a própria equipe de bibliotecários começou a adquirir características dos personagens evocados: Baird transformou-se gradualmente numa princesa, Jacob no lenhador do conto da Chapeuzinho Vermelho... e Cassandra incorporou o príncipe encantado. Com ao menos dois homens constantes na equipe de bibliotecários, a vinculação do príncipe a uma mulher sugere mera concessão ao politicamente correto. No último episódio, "O tear do destino", o reaparecimento abrupto do antagonista Dulaque parecia estar ligado mais ao cumprimento de horas contratuais do ator que ao deslinde da trama. Quem esperou casos mais intrincados e apostou em maior combustível cultural - o que não é absurdo ao deparar-se com uma série dedicada a uma profissão tão específica - foi desapontado. Enfim, faltou borogodó. Durante a exibição, mesmo o mais humilde e cândido dos telespectadores começou a especular alternativas à atuação daqueles adolescentes da tela, tão distanciados dos livros quanto os adolescentes da vida real. Sendo a proposta enveredar pelo fantástico, então que se reunissem bibliotecários de diversas épocas e lugares para que do contato entre eles decorresse algo mais instrutivo e instigante. Eventuais demandas de cálculos exatos e de conhecimento a respeito de tanto de bibliotecas quanto de seus acervos - e mesmo d'outros monumentos - poderia ficar ao cargo de Ranganathan. Shiyali Ramamrita Ranganathan (1892/1972) é considerado o pai da biblioteconomia indiana. São clássicos os seus trabalhos técnicos a respeito do assunto. Formou-se inicialmente em matemática, e a ligação com a biblioteconomia derivou de seu magistério universitário na antiga cidade de Madras. Envolveu-se de tal forma com a melhoria da biblioteca da universidade que aceitou a incumbência de estudar biblioteconomia na Inglaterra, como condição para assumir a vaga de bibliotecário. Neste empenho, teria visitado mais de cem bibliotecas, de variados tipos, o que encantou este colunista que acalenta a ideia de, um dia, manter uma coluna sobre bibliotecas e livrarias que conheceu pessoalmente. Ranganathan estabeleceu cinco leis básicas da biblioteconomia: (I) os livros são para usar; (II) a cada leitor seu livro; (III) a cada livro seu leitor; (IV) poupe o tempo do leitor; (V) a biblioteca é um organismo em crescimento. O aspecto cerebrino, por assim dizer, da solução de alguns casos seria característica de Jorge Luis Borges. O escritor argentino foi admitido na Biblioteca Municipal Miguel Cané em 1937, sendo afastado nove anos depois por despeito do ditador Perón, quem tentou humilhá-lo fazendo-o ser designado fiscal de frangos e ovos do mercado municipal. Em 1955 foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional. Em coautoria com Adolfo Bioy Casares, Borges escreveu alguns livros de casos detetivescos protagonizados por H. Bustos Domecq. No início de cada episódio, imóvel e segurando o castão de sua bengala, ele poderia escutar a narrativa do problema, reaparecendo ao final com solução coincidente e complementar à encontrada pelos demais personagens. A conservação do acervo ficaria por conta de D. Manuel II (1889/1932), último rei de Portugal. Assumiu o trono após o regicídio que derrubou Carlos I e o principe real Luís Filipe. Seu breve reinado de dois anos encerrou-se com a proclamação da república portuguesa e seu exílio na Inglaterra. Recolhido em Londres, voltou-se ao estudo da literatura portuguesa medieval e renascentista e à coleção especializada de livros. Organizou, em três volumes, um catálogo bilingue comentado e ilustrado dos livros antigos que compunham sua própria biblioteca - ou livraria, como preferem os portugueses. Este catálogo foi distribuído mediante subscrição, sendo o primeiro subscritor o rei George V, da Inglaterra. Segundo as informações de que dispomos, estes livros são hoje mantidos em Vila Viçosa, Lisboa. Segundo um visitante, "D. Manuel II foi colecionador de certas espécies de livros, e o prazer de colecionar obriga a por o livro raro ao lado do livro vulgar, mas no seu espírito o colecionador viveu subordinado à disciplina do bibliófilo amador da beleza gráfica, isto é, das edições de bom papel e das encardenações esmeradas". <>BR> A tensão interna ao grupo de bibliotecários adviria da presença de um papa e de um antipapa, "papéis" que poderiam ser ocupados, respectivamente, por Pio XI e Anastácio III. Antipapas, na prática, foram os candidatos preteridos nas eleições de um novo Bispo de Roma e que não se conformaram com a escolha. Nada tem a haver com questões de fé nem com o período de Avignon. Ainda que movimentada no exercício do magistério e do pontificado, a vida pessoal de Ambrogio Damiano Achille Ratti - o papa Pio XI - foi mais tranquila. Coube-lhe ser o primeiro governante da cidade-estado do Vaticano. Como Ranganathan, percorreu bibliotecas pela Itália e Europa. A partir de 1907 foi prefeito da Biblioteca Ambrosiana, instituição histórica milanesa que também abriga a Pinacoteca Ambrosiana e deve seu nome a Ambrósio, padroeiro de Milão. Ainda clérigo, graduou-se por três vezes: Filosofia, Direito Canônico e Teologia. Não obstante, seu gosto pelas ciências levou-o a colaborar temporariamente com o geólogo Giuseppe Mercalli. Fato notável de seu magistério é que, como professor de hebraico, adquiriu o hábito de levar seus alunos à Sinagoga de Milão para que eles familiarizassem-se com a pronúncia do idioma. Recuperador de arquivos eclesiásticos em Milão e de uma hagiografia de Santa Inês de Praga, a produção de próprio punho encontra-se nas muitas encíclicas que escreveu. Cena: D. Manuel: (examina diversos livros e pacotes de livros depositados sobre uma ampla mesa. Pega três ou quatro livros aleatoriamente): Então chegaram os livros mais recentes! Esplêndido. Raimundo Carreiro, a tradução em português de Joseph Roth, que ficará ao lado do original, e ... (pausa). Lao Zi: Algo errado? D. Manuel: (preocupado, examinando um livro) Algum chiste, receio... (Vira a capa na direção de Lao Zi e de Borges, que suspira. Depois, vira-a na direção de Pio XI) Pio XI: Quando sou eu quem recebe os livros com o carteiro, costumo ser mais criterioso com o que permito entrar. Anastácio (entredentes, sem levantar os olhos de um fólio): Os outros, sempre os outros... Ranganathan: Vamos, de que se trata? (Toma o volume) Bom, entre os propósitos básicos de uma biblioteca está a reunião da produção literária de uma época. Guarda o volume. Si o problema for a encadernação, peça uma de papelão marmorizado e lombada de corvim. Borges: Faça isto. Abomina-me a censura. De qualquer forma, obras assim não são longevas o suficiente para que eu me interesse por elas. D. Manuel: Ainda assim.... Thalita Rebouças? (Cena fecha em Olaff, buldogue do grupo, que acorda assustado ao lado da lareira e sai rosnando. No jardim defronte ao prédio da biblioteca, um búfalo rumina deitado no gramado. ). Ricardo de Mattos |
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