|
Sexta-feira, 17/4/2015 A literatura em transe Marta Barcellos Ernest Hemingway recomendava: escreva bêbado, revise sóbrio. No caso dele, e de mais meia dúzia de escritores que se notabilizaram pela boemia (eram outros tempos, não consigo pensar em nenhum contemporâneo), a dica era seguida literalmente. Para a grande maioria, porém, o conselho será útil apenas se compreendido no sentido de se valorizar um eventual fluxo inconsciente, no processo de construção da escrita. E, depois do "transe", a regra é bem menos divertida: revisão, revisão, revisão. Ou, muitas vezes, lata do lixo. É curioso como, apesar de não acreditarmos em inspiração dos céus, no caso da literatura somos suscetíveis às ideias românticas em torno de criação e originalidade, como se fosse possível criar algo do zero, da página em branco, como no tempo em que se acreditava que toda escritura era ditada por Deus. Esse romantismo inclusive alimenta todo um fetiche sobre o processo criativo de autores famosos, sempre indagados sobre suas manias e rituais. O escritor iniciante com frequência se rende às superstições. E vai que elas funcionam. O problema é que a magia só funciona se existe o "resto". Precisa existir o "resto- antes": a matéria bruta da qual se vale todo escritor, feita de vivências, leituras, percepções, entrevisões, sentimentos. E também o "resto-depois", ou seja, a técnica e a habilidade para transformar uma ideia/insight/tema em literatura. Estamos falando, claro, do duro ofício do escritor. Talvez, entre o "resto-antes" e o "resto-depois", alguma bebedeira seja necessária para arrancar essa matéria bruta da literatura da nossa memória e da nossa sensibilidade. Julio Cortázar dizia que era o tema quem escolhia o escritor. Inclusive de nada adianta um escritor ceder ao outro: olhe, isso dá um conto! Só o será para quem teve o insight, para quem foi sensibilizado por ele. Esse assunto é abordado também, com bastante humor, por Moacyr Scliar, em "Os contistas". Foi Cortázar quem formulou uma "teoria" do conto citada à exaustão em oficinas literárias, e sintetizada numa metáfora de boxe que - como no caso da bebedeira de Hemingway - corre riscos de ser compreendida literalmente demais. Trata-se de uma comparação entre os dois principais gêneros ficcionais, ambientada num ringue: enquanto o romance ganharia o leitor por pontos, ou seja, por efeitos que se acumulam; o conto precisaria ganhar por nocaute. Na ânsia de acertar em cheio o "adversário-leitor", muitos contistas iniciantes tratam de, chegando ao final de sua narrativa, surpreendê-lo com um soco inesperado. Inesperado demais. Do nada, alguém morre ou se suicida. Já estive em oficinas em que todos os personagens engendrados pelos alunos eram assassinados ou se suicidavam no final. Se formos ler integralmente o texto em que Cortázar desenvolve seu raciocínio ("Alguns aspectos do conto", a partir de uma palestra dada em Cuba), veremos que a história do boxe não é bem assim. Para o bom nocaute acontecer, são necessários golpes iniciais com aparência de pouca eficácia, dados durante a narrativa. São golpes, diz o argentino, que já estão minando a resistência do leitor, sem que ele se dê conta. Dá para o escritor planejar golpes tão sutis, e ainda o nocaute final, durante uma bebedeira? Acho pouco provável. Mas vai que funciona. Marta Barcellos |
|
|