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Quinta-feira, 30/4/2015 Viagem a 1968: Tropeços e Desventuras (3) Marilia Mota Silva (continuação de...) -- Eu sei o que é burguesia, me lembro das aulas sobre mercantilismo, Nação-Estado, Revolução Francesa, mas burguesia aqui, no nosso caso, é o quê? Como você determina se alguém é burguês e por que a classe deve ser eliminada? A classificação era simples e imediata: - Na sua casa vocês comem presunto? -- E, sem esperar resposta: -- Então, você é burguesa! - Está brincando! Se acabar com a classe média, sobra o quê? Uma grande base de pobreza e os donos da bola no comando. Por mim, deveria ser o oposto, uma classe média grande, um retângulo mais que uma pirâmide. - Não é toda a classe média. É só quem é patrão, quem explora a mais-valia. O povo no governo deve ser o único proprietário, o único patrão, o dono da terra, do capital, dos meios-de-produção. - Das pessoas também?! - Da mão-de-obra, sim; todos trabalham pela coletividade. A ideia de um poder superior cuidando de tudo, e de não ter responsabilidades além de cumprir a tarefa do dia, até que tinha seus atrativos. Seríamos como esses admiráveis exércitos de formigas. Seria esse o objetivo? Não devia ser! Para o bem e para o mal, somos mais complexos que insetos. Mas eles pareciam sérios, inteligentes e articulados. Eu precisava me esforçar mais para entender melhor suas propostas. Ia para o centro de estudos, ajudava a pintar faixas, a distribuir panfletos. Evitava fazer mais de duas perguntas para a mesma pessoa, para não sobrecarregar ninguém. Um deles disse: procura ler sobre Cuba, no centro de estudos tem vários livros sobre o assunto. Está tudo lá. Li: Sierra Maestra, Fidel, Fulgêncio Batista, os americanos imperialistas. Muito bem, mas o que aquilo tinha a ver conosco? Minha ignorância me desesperava. E era extensa, cobria todas as áreas. * * * Mamãe me enviava cartas com frequência para falar da dor que eu lhe causava, das preocupações que não a deixavam dormir. A certa altura, ela sempre escrevia, em letras maiúsculas, atropelando a pauta: JORNALISMO, POR QUÊ??? Suas cartas me aniquilavam, mas acredito que ela não pensava em mim quando escrevia. Apenas cumpria o que julgava ser seu dever de mãe. Mãe devotada. Nesse papel ela me enviou outra caixa com alimentos - o lombinho inevitável e docinhos de côco - sua especialidade. Eu mal tinha chegado do trabalho, quando bateram à porta. Para minha surpresa, era o dentista que nos tratava quando crianças. Amável, deu notícias de minha mãe, repetiu-me suas recomendações com um sorrisinho cúmplice, e me convidou para jantar, fazer-lhe companhia. Tinha vindo fazer compras para o consultório e não gostava de comer sozinho. Agradeci a gentileza e recusei: dormia cedo. Que conversa poderia ter com ele? Nunca houve amizade entre nós, só contato profissional, quando éramos crianças ainda. Mas ele não se dava por vencido, se fazia coitadinho, insistia. Concordei para acabar com aquilo. Não poderia mesmo recusar, pensei, o homem tinha sido gentilíssimo, trazendo em mãos a encomenda incômoda. Quando descemos, ele mais animado, lembrou-se de um restaurante na Pampulha, aonde ia sempre quando estava em Belo Horizonte. Para quem não conhece Belo Horizonte, a Pampulha é, ou era, um bairro distante, como a Barra da Tijuca para quem mora na Zona Sul do Rio. Propus um restaurante ali mesmo, no centro. -- Não demora nada, prometo. De carro é num instante. O restaurante era um chalé com vigas expostas, bonito, praticamente vazio no meio da semana. O dentista pediu a carta de vinhos. Carta de vinhos...seria um jantar longo. Repeti que tinha pressa, mas ele queria saber de mim, menina corajosa, assim tão jovem... Cuidei para manter a conversa rala e tediosa, para evitar demoras. Jantamos, finalmente. -- Muito bem, vamos agora?-- eu disse, mas ele recostou-se na cadeira, alisando a gravata sobre o ventre, os olhos em mim, se demorando, como quem cobiça um objeto na vitrine e sorri triunfante, antecipando a posse. Não pode ser sexo, tentei me convencer. Ele nos conhece desde pequenas! Mamãe confiava nele. Muito religioso, dizia; não perde missa de domingo! E mamãe jamais duvidava do acerto de seus julgamentos. - Relaxa, toma um cálice de vinho! Não havia dúvida. Ele usufruía o momento, dono da situação, rei do mundo. Chamei o garçom, pedi a conta e disse que tinha pressa. O garçom olhou para o "patrão" para confirmar a ordem. Passava de dez horas, eu estava sem a bolsa, nem ônibus teria como pegar. Irritada com minha estupidez, insegurança e fragilidade, entrei no fusca, rezando pra chegar em casa o mais depressa possível. Em minutos, ele enveredou por uma estrada de terra, depois outra, ainda mais fechada. Insisti que voltasse para o asfalto, para a cidade. - É só um atalho. Não se preocupe, você acha o quê? Que vou te sequestrar? E foi em frente, aos solavancos na escuridão. Mato fechado, nem uma luzinha acesa em toda a volta. Pesei minhas chances: saltar do carro, cair na estrada. Com sorte, teria uns arranhões, sairia correndo. Para onde? Não havia nada por perto, além de árvores, nenhuma casa. Ele ia sério agora, avançando sempre, surdo aos meus pedidos. Corpos de mulheres jogados no mato, na beira de estradas, eram notícia de jornal todos os dias. Crimes que nunca eram solucionados. E se ele fosse um assassino desses? Preces cruzavam minha mente. Decidi saltar do carro, mas a maçaneta estava travada: - Abre essa porta, gritei. Ele diminuiu a marcha e me olhou com pouco caso. - Você está muito nervosa, não vale a pena. E fez a volta. Calado, percorreu de novo as trilhas entre as árvores até que chegamos ao asfalto, aos postes de luz, seus pequenos halos amarelos pontuando a escuridão. Eu seguia tensa, o coração batendon no ouvido, nas veias do pescoço. Mas estava de volta. Ruazinhas, avenidas, conhecia muito pouco ainda e tentava me localizar; nunca a cidade me pareceu mais feia, hostil e triste. De repente, ele deu uma guinada para a direita e parou. Me virei para sair assim que destravasse a porta, mas ele agarrou minha cabeça com as duas mãos, e enfiou a lingua grossa, sabugosa, até minha garganta. Eu o empurrava e afastava o corpo com repulsa extrema. Ele me soltou, enfim, e destravou a porta, com um riso debochado: - Em casa, sã e salva, não precisava ficar tão apavorada. Não cuspi na cara dele, embora tivesse ânsia de vômito: - Beijo é isso?- pensei enojada. Implorei a minha mãe que não me mandasse mais nada; disse que o dentista era um homem grosseiro, repulsivo. Ninguém me perguntou que motivos tinha para julgá-lo com essa dureza, e eu não me sentia no direito de impor-lhes o acontecido. Se contasse, meus pais seriam forçados a tomar uma atitude, e haveria escândalo, diz-que-me-diz-que; um preço muito alto. E eu podia imaginar o que todos pensariam, mesmo que não dissessem: - Não quis sair de casa? Não achou que podia? Então! Quem procura, acha. * * * Terezinha, filha da Dona Júlia, queria ir a um barzinho. Quase dez horas, eu pronta pra dormir, disse que não. -- Mas hoje é sábado! Diz o que você gosta e a gente vai. -- Uma hora-dançante em qualquer faculdade, aí podia ser. -- Para quem não tem dinheiro e gosta de dançar era o programa ideal. -- A gente pode ir, hoje tem na Escola de Veterinária. É longe, mas a gente pode pegar carona. -- Como assim? Como a gente vai saber se um carro vai naquela direção? -- Não tem problema. Na Rua Espírito Santo a essa hora sempre tem gente oferecendo carona. Eles levam a gente a onde a gente quiser. Achei muito simpático esse costume dos mineiros mas duvidei que desse certo. Para minha surpresa, assim que chegamos, um carro parou junto de nós. Terezinha falou com os rapazes pela janela, um deles saiu, abriu a porta de trás para mim e entrou em seguida. Ela sentou-se no banco da frente e logo entabulou conversa com o motorista, com uma desenvoltura que me surpreendeu. Mas falavam baixo, não pude participar; e o rapaz parecia mal-humorado. Se não queria dar carona, por que ofereceu? Dois tipos meio grosseiros, pensei, mas procurei me conduzir o melhor possível, afinal eles estavam fazendo a incrível gentileza de levar duas desconhecidas a uma hora-dançante, como se fossem taxistas. Respondi com paciência às perguntas que me fazia o rapaz a meu lado, embora seu olhar intenso me incomodasse. Chegamos. Salão grande, bailinho animado. Os rapazes da carona, em vez de irem embora, resolveram ficar. Encontraram mesa e se instalaram. Agradeci-lhes a gentileza mais uma vez e saí de perto, procurando mesa ou cadeira para mim. Um rapaz me convidou pra dançar e aceitei. Terezinha veio me dizer que eu não podia dançar com outros, que tinha ficar com eles, que os rapazes estavam furiosos comigo. - De jeito nenhum! Imagina se vou sentar com esses caras esquisitos só porque nos deram carona! Dancei duas músicas com Antônio, pedi licença e fui avisar Terezinha que havia mesas vazias no outro canto do salão e nós duas podíamos ir pra lá. Ela segurou meu pulso, nervosa, insistiu pra eu ficar. - Eu, hem? Saí sem dar resposta, confiante que acharia carona de volta para casa. Antônio me esperava, fomos tomar refresco no pátio e conversar um pouco. Tomávamos um guaraná, quando um sujeito chegou por trás e deu-lhe um murro no rosto. Mais surpreso que ferido, a camisa molhada de guaraná, ele olhou o agressor, tentando entender o que se passava. Era o sujeito da carona, o do volante que invocava direitos sobre mim. Eu estava com ele, tinha que ficar com ele. - É verdade isso? Antônio me perguntou. - Sim, eu vim com eles. Deram carona pra mim e minha amiga, mas não tenho nada a ver com eles, nem os conheço. - Você escutou, Antônio disse ao sujeito, -- Ela disse que não quer saber de vocês. Furioso, o cara avançou de novo, mas, sendo estranho em meio aos estudantes, foi posto pra fora e Terezinha foi com eles. Quando a confusão se desfez, Antônio me pediu para lhe contar o que havia acontecido desde o comecinho. Foi meu primeiro namorado. Tentou me curar da minha credulidade, da confiança excessiva nas pessoas, mas esse não é um processo simples e não há cura definitiva. - Você tem tudo a aprender ainda. Não tem ideia de como são os homens, como é o mundo. É muito dificil viver sozinha em cidade grande sem sujar os pés. Ele se dispunha a me ensinar.E poderiamos ter vivido bons momentos se ele não tivesse precipitado o fim. - Vamos nos casar em breve!- ele me disse, um dia. - Tenho grandes projetos para nós, tenho tudo planejado. Engasguei com o susto. - Eu sei, não é maravilhoso? Ele falava meio tatibitate como se conversasse com uma criança. - E tem mais uma coisinha,-- disse, segurando minhas mãos: - Não quero minha mulherzinha trabalhando fora! Ainda mais jornalismo! Você não precisa de nada disso. Quero que deixe a faculdade. Quando me refiz do choque, disse-lhe que o namoro estava acabado e pedi que fosse embora. - Por quê? perguntou desorientado. - Sua família tem outros planos para você? Não tinha entendido nada, não tinha me enxergado nem ouvido durante os três meses de convivência, concluí: não tinha respeito por mim. Parei de ouvir sua arenga infindável até que, finalmente, ele concluiu em tom de ameaça: - Se eu sair por aquela porta, você nunca mais vai me ver. Abri a porta, e ele foi embora, os olhos inundados. No dia seguinte, saí para jantar com um rapaz que conheci na passeata do Edson Luiz e se tornou meu amigo. De manhã, carta do Antônio na portaria, quatro ou cinco páginas em papel azul. Tinha me seguido, me viu acompanhada, imaginou-se traído. Acusações, lamúrias, nenhuma referência ao que realmente importava. Joguei a carta no lixo e esqueci o assunto. * * * Sexo, naqueles anos, era questão política. Precisávamos quebrar os tabus, assumir nossa independência, combater os costumes que nos escravizavam. Não queríamos viver como nossos pais, e eu comungava desse sentimento com todo o fervor. O problema é que caberia às mulheres pagar o preço dessas mudanças. Tabus a vencer se referiam a nós e as consequências nós é que sofreríamos. Homens não teriam que tomar a pílula, enfrentar dramas de vida e morte, como a gravidez e o aborto, caso a pílula falhasse. Não tinha energia emocional, física ou financeira para me expor a mais esse frente de batalha. Não podia correr o risco de perder a luta depois de tudo o que tinha investido pelo direito de escolher o meu caminho. O problema é que me sentia vulnerável; sem saber o que era sexo, na prática, tinha medo dos homens, da ameaça que via neles, de sua força física, seu desejo. Assim, eu namorava muito, mas a qualquer sinal de tensão, preferia me afastar. * * * Em uma hora-dançante na Faculdade de Economia, dancei com um rapaz bonito, elegante, do tipo que se levanta quando você entra na sala, mesmo você morando em vaga, num 18º andar de um "balança-mas-não- cai", com elevadores sempre "em manutenção". Saímos algumas vezes. Mãos dadas, conversas boas, uma sensação de carinho e segurança. Um dia, ele dobrou a manga da camisa e mostrou o braço vermelho de sol. - Gosto muito de pescar no Araguaia, você conhece? Peguei lá esse bronzeado. Havia um código na pergunta, uma segunda intenção; seu olhar me perguntava se eu entendia. Não, não entendia; pescaria no Araguaia não me dizia nada. Ele tirou do bolso a carteira de identidade e me mostrou: - Olha aqui, meu nome, está vendo? Eu lhe disse meu nome mesmo, verdadeiro. Por que mentiria? Mais uma charada que eu não sabia como decifrar. Um domingo, saindo do cinema, de repente ele soltou a minha mão, tomou a dianteira e se misturou com as pessoas na calçada. Talvez tivesse outra namorada, pensei, mas ele reapareceu ao meu lado, pediu desculpas, disse que às vezes achava legal a gente andar assim como pessoas que se encontraram casualmetne. Estava ansioso, olhando sobre os ombros enquanto andávamos. Em frente a meu prédio, ele se despediu com um aceno: - venho amanhã, disse, e saiu depressa. Veio na quinta, abatido, se desculpando. Eu também me desculpei quando lhe pedi que não viesse mais; não me sentia forte o bastante para enfrentar uma situação que não compreendia. Tinha medo do amor, de me tornar dependente. Não tinha ideia de quem era, de como reagiria. E se me tornasse uma dessas pessoas que passam o dia esperando um telefonema...perderia a luta. Só compreendi as alusões à pescaria no Araguaia anos depois, quando ouvi falar das guerrilhas e soube da morte de três irmãos que eu conhecia, da familia Petit. Chorei pelos Petit e chorei por ele, pensando que tivesse sofrido o mesmo destino. Até que vi com alívio e alegria sua foto no jornal, quarenta anos depois da despedida tensa na Rua da Bahia. Tinha sobrevivido a quatro anos na cadeia e retomado a luta por uma sociedade menos injusta - agora como empresário e político. * * * Determinada a compreender melhor o mundo de que agora fazia parte, frequentava o Diretório Acadêmico, o Centro de Estudos, comparecia a conversas e palestras e não perdia reunião da UNE. Uma noite, estava em uma reunião de cúpula, na Faculdade de Medicina, quando comprendi que não devia estar ali. Não era meu lugar. Nunca poderia viver uma vida clandestina, não acreditava em violência, a luta armada contra um governo militar me parecia um empreendimento sem esperança. Não gostava das "palavras de ordem", das brigas internas, dos vícios de autoridade, dos clichês repetidos à exaustão, da falta de clareza das propostas. Não admitiria ninguém me enquadrando, me dando ordens sobre o que pensar, sentir, fazer, até nas relações pessoais. Não é meu lugar, não é minha turma, é a última vez, pensava, quando as luzes se apagaram. Todas as luzes, a sala, a faculdade, uma escuridão de breu em toda a volta. Silêncio e respirações suspensas por um momento até que ouvimos um sussurro, vindo da porta: "É a polícia, estamos cercados". Alguém me agarrou a mão e disse corre, e eu o segui, cegamente, por corredores; fora da faculdade, passamos por uma cerca baixa, corremos por dentro do parque, e me vi em frente do meu prédio: - Sobe, já!, ele disse e sumiu. Não pude agradecer, não sabia seu nome, nem reconheceria seu rosto, que mal vi. Anjos-da-guarda nunca me faltaram. * * * Aos poucos, me situava. Era contra a ditadura, o poder imposto, a censura à imprensa, a indignidade de se viver suspeitando de todos. Abominava o mundo de alcaguetes, serviços secretos, tortura, suicídios forjados, sequestros, assassinatos. Ditadura corrompe as instituições, os princípios, a segurança das leis, sabota o pensamento, destrói a confiança que é a base de tudo. Seria sempre contra qualquer tipo de ditadura, de esquerda ou de direita, na família, no trabalho, no país. Não entendia como alguém pudesse combater a ditadura e, ao mesmo tempo, defender governos totalitários. E o assunto era tabu. Quem questionasse Stálin, Mao Zedong, Fidel, a invasão de Praga, Sibéria, execuções sumárias , tornava-se um pária, revisionista, inocente útil, burguês abominável. E todos se curvavam ou se calavam. * * * O pior tinha passado, pensei, quando no Natal minha irmã recém-casada me presenteou com uma máquina de escrever portátil. Era seu aval ao meu direito de escolher. Ansiava agora pelo recomeço das aulas, pelo estágio no Diário do Comércio, o único jornal em Belo Horizonte que pagava em dia; o único que usava impressão em off-set quando todos os outros ainda usavam tipografia. Estágio pelo MUDES, $200 cruzeiros, mais que o salário-mínimo! Mais que suficiente para pagar o aluguel da vaga, 60, o troley, a lavação de roupa (não se podia lavar roupa no apartamento. Dentista, médico, havia a Fundação Mendes Pimentel. * * * Ano novo. Como um virus sutil e agressivo, o medo degenerava o que há de mais precioso na convivência humana: a confiança. O alcaguete poderia ser qualquer um. Se um colega começasse a falar de política tornava-se suspeito. A resposta-chavão, nesse caso, disfarçava sob o humor amargo a indignidade da situação: "Não sei de nada, não acho nada, tinha um amigo que achava e nunca mais acharam ele." E assim era: Professores, jornalistas, colegas desapareciam sem dar notícia. Não sabíamos se tinham sido presos, mortos ou se haviam se exilado. Um rapaz que eu só conhecia dos corredores da faculdade, um dia me bateu à porta com uma caixa de livros. Seu companheiro de república tinha desaparecido, ele estava com medo de uma batida da polícia, queria salvar suas coisas. Garantiu que os livros não me comprometeriam, mas se a polícia os achasse em sua casa, levaria tudo. Kierkegaard, Bertrand Russel, Sartre, Marcuse, Herman Hesse, George Orwell, Aldous Huxley, Karen Horney, Thomas Mann, Teilhard du Chardin: um menu eclético, uma festa para mim! Ainda tenho a maioria deles. O dono nunca veio resgatá-los. * * * Na última passeata a que fui, uma viatura com PMs postados nas janelas avançou pela rua do mercado, em alta velocidade; corremos para as calçadas, enquanto eles atiravam em rajadas para baixo. Um rapaz levou um tiro acima do tornozelo, vacilou como se tivesse torcido o pé e se apoiou em mim. Entramos na primeira portaria destrancada, batemos nos apartamentos, ninguém atendia. Fomos subindo as escadas, até que no quarto andar finalmente abriram a porta. Chegou mais gente para socorrê-lo, pude ir embora. A tristeza me consumia. Uma luta desigual em que todos perderíamos, fosse qual fosse o resultado. Um dia, a polícia cercou a faculdade. Deram uns tiros para o alto na direção das janelas, quando os chamamos de gorilas. Estaria havendo uma reunião regional da UNE no subsolo, houve denúncia. Ficamos presos lá dentro o dia inteiro; só saímos à noite, todos juntos, formando um bloco fechado. Os procurados conseguiram escapar mas, em represália, fecharam o bandejão da faculdade. Passei a comer no bandejão da Medicina que foi fechado em seguida. Eventualmente um colega nos convidava, a mim e a outros três que dependiam do bandejão, para almoçar na casa deles. O pai de um desses colegas tinha uma biblioteca respeitável. Era um leitor entusiasmado e gostava de discutir ideias, criar polêmica, desafios. O almoço foi animadíssimo. Fui convidada outras vezes e acolhida com entusiasmo. Tornaram-se minha família no "exilio". Nos anos seguintes, mergulhei no trabalho. Com esse amigo - que a essa altura se tornara namorado- cuja família, de certo modo, me adotara, e mais dois colegas, criamos uma Agência de Redatores. Fizemos revistas e house-organs para associações de médicos, dentistas, psiquiatras, ACM. Fizemos o Jornal de Betim, dirigi uma escola, trabalhei em publicidade, criamos programas de rádio, uma experiência que deixou saudades. Ao fim do curso, casamento. Em menos de quatro anos, duas filhas. Mudamos de cidade e mudei de profissão para ter horário, rotina para as crianças. Em pouco tempo, no lugar de IBMs, havia computadores em nossas mesas de trabalho. Fazíamos a programação em muitos casos; não havia ainda softwares adequados às necessidades. Começava uma nova era, de inovação e obsolescência aceleradas. Em todas as áreas. Fusões, reengenharia, globalização, implosão de empregos em larga escala, inovação! Mas no essencial mudamos pouco, e nem sempre para melhor. A luta contra a mulher - para submetê-la e desqualificá-la- continua no mundo inteiro. Varia apenas o grau de violência: do tiro no rosto ao olhar obsceno. A divisão social e ideológica tornou-se mais aguda. A ganância e o individualismo se exacerbaram, assim como o ódio, a inveja e o medo, usados como armas de manobra: a luta de sempre por dominação, poder e privilégios. O sangrento século passado estertora mas não morre. * * * No quintal da minha infância, nos fundos, onde hoje passa uma avenida, um bambual cerrado, antigo, isolava-nos do rio e de vizinhos; um templo solene e silencioso, sempre na penumbra. No alto, fragmentos de azul em meio ao verde que a brisa, às vezes, agitava. Embaixo, a palha seca dos bambus e uma areia macia, branca como talco, em que os pés mergulhavam. A vida! A comunhão com a vida. Não é preciso muito para ser feliz. Marilia Mota Silva |
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