Quinta-feira, 21/5/2015
O gosto da cidade em minha boca
Elisa Andrade Buzzo
− Purpurina negra cinza e prata, em pequenos montes ela se acumula no asfalto, nas frinchas dos viadutos, entre o meio-fio e o olho da rua, poeira poluente que ao longo do tempo se foi triturando, se espalhando com o vento em partículas finíssimas pela cidade, a cada dia mais se refinando este pó de sujeira e vida. Mais parece matéria divina aquela que não se pega com as mãos, antes se percebe a presença brilhosa que se mantém fisicamente impossível de se alcançar. E assim se concentra mais uma camada, se redensifica mais dessa grosseira substância da qual participamos, células mortas, cabelos, resíduos de combustíveis fósseis e toda a sorte de sobras solitárias. − Diariamente temos um encontro com este corpo vivo de cidade. Há uma relação de dependência na medida em que ela se faz e desfaz e nós participamos da sua efemeridade e continuidade. Passamos a mão em seu lânguido e gelado corpo em balaústres, corrimões, num contato furtivo e desinteressado. Agora será diferente. Quando encostei o corpo na cidade, foi num sábado ensolarado no Jardim Botânico. Os lagartos se refastelavam nas pedras quentes da escadaria, se escondiam nos seus buracos. E os nossos corpos tiveram um primeiro encontro na umidade da grama ainda serenada. − A minha cidade parece ter mais de um gosto. Um é etéreo, cheira a arvoredo colonial, espuma limpa de rio marulhando. O outro é áspero, poluente este gosto particulado que engolfo numa rajada de ar e estala forte na língua, indiferente este gosto refrigerado que se sente, se repudia e se vandaliza. − Neste que é um dia típico em que os olhares se encontram e se desviam desinteressados no vagão lotado, estou tão perto da porta de metal que chego quase a beijá-la, estamos em tête-à-tête, embaladas pelo rumor do movimento subterrâneo. Foi quando encostei a boca na cidade e reconhecemos um olor de metal, de coisa usada. − Então me apoio em seu peito vasto, enquanto percorremos vales e ruas nunca vistas, em vilas cercanas da serra. Pequena sou, mas mandatária de suas vontades, seguimos em sintonia, formando uma composição unitária após a devassidão dos corpos. E escorrego em sua língua áspera de ladeiras, me perco em sua boca funda, negra e obscura, para então sair, do outro lado do túnel, aguardado um outro depois outro e sempre a passagem das suas luzes magníficas.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 21/5/2015
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