|
Segunda-feira, 18/5/2015 Liberdade Ricardo de Mattos "Ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode" (Jean Paul Sartre) Foi com satisfação que encerramos a leitura do texto intitulado O fardo e a bênção da mortalidade, escrito pelo filósofo alemão Hans Jonas (1903/1993). Com argumentos muito bem sequenciados, Jonas restringe-se ao homem encarnado, mas lança questões que não podem ser resolvidas pelo homem encarnado. Há vários pontos que nos chamaram a atenção neste texto, alguns dos quais mencionaremos suscintamente para logo chegarmos ao tema de nossa coluna. Jonas parte da obviedade de que o organismo só morre porque está vivo. Decorre que, num primeiro momento, viver é evitar a morte. Se fosse apenas isto, para que serviria ao indivíduo travar sua batalha diária pelo direito de permanecer sobre o solo em que pisa? Esta pode ser a realidade de populações inteiras, porém mesmo o indivíduo em situações das mais vulneráveis ocasionadas por guerras civis, epidemias ou governos incompetentes reluta em manter sua vida para apenas por exercício biológico. "Até mesmo o mais doente dentre nós, se deseja de algum modo continuar a viver, deseja o fazer pensando e sentindo, e não apenas digerindo", afirma o filósofo. Chega o momento em que a pessoa não apenas quer afastar a morte e manter-se vivo, como também decide afirmar-se como ser ao menos diante do trecho de mundo no qual reside. "Apenas no confronto com o sempre possível não-ser, o ser poderia vir a sentir-se, afirmar-se, tornar-se seu próprio fim. Através da negação do não-ser, 'ser' transforma-se em uma constante escolha de si mesmo", ele arremata. Daí Jonas dizer que a mortalidade orgânica, biológica, ser ao mesmo tempo um fardo e uma bênção. Fardo, pois em meio à mencionada pugna pela sobrevivência, e a despeito de seus esforços, o indivíduo pode sucumbir. Bênção, pois o indivíduo não se encontra estruturado para a imortalidade orgânica, em que pese o sonho de muitos neste sentido. Reportando-se inclusive ao escritor irlandês Jonathan Swift, Jonas especula se a imortalidade biológica não traria a cada pessoa um de dois transtornos: ou o passado seria esquecido para que se pudessem armazenar informações mais recentes, ou as informações seriam arquivadas no limite do cérebro, chegando o momento que a pessoa viveria no passado, sem conexão com o presente. Segundo Jonas, o indivíduo não está organicamente adequado à vida eterna no corpo. Há de perder seu envoltório mais grosseiro e é uma lei natural que assim ocorra. À mortalidade antepõe-se a natalidade: "o começo sempre renovado, que só pode acontecer ao preço de um fim sempre repetido, é a proteção da humanidade contra a queda no tédio e na rotina, sua chance de conservar a espontaneidade da vida". Aproximando esta leitura de reflexões que nos ocupavam o espírito, formou-se a questão: e para a Liberdade, estará o homem adaptado? De que Liberdade ele gozará, mesmo que consideremos apenas o tempo entre o primeiro choro e o último suspiro? Liberdade é algo já por si difícil de definir. Seria fazer o que queremos? Mas si nosso próprio querer pode estar sujeito a pulsões ou a amarras das quais nós mesmos não temos consciência... Ou até notamos um rabicho de consciência, não gostamos e esforçarmo-nos por escondê-lo. Certo pensamento ao nosso ver reducionista afirma que a Lei decide o que é Liberdade. Nossa Constituição não a define, mas apresenta casos em que ela se manifesta: liberdade de ir, vir, ficar, de expressão, de associar-se e manter-se ou não associado. Liberdade de consciência, relacionada com a liberdade de adotar a religião que se quiser, ou não adotar alguma. Livre iniciativa no plano dos negócios. Liberdade de convicção política. Entretanto, entendemos a Liberdade como algo inerente ao humano tão somente porque humano. Não será este ou aquele Estado quem decidirá o que é ser livre. Este ou aquele Estado apenas reconhecerá um espectro maior ou menor de Liberdade às pessoas que habitam dentro de suas fronteiras geográficas. A Liberdade é biológica? Seria temerário afirmar que sim. A princípio, somos livres para viver no meio ambiente ao qual este corpo físico está adaptado. Somos livres para decidir pela vida frugal no meio do deserto do Saara. Podemos mudar-nos para lá e levar esta extravagância até suas últimas consequências. Ou sua última consequência: a morte física. Esperamos que deste exemplo extremo o leitor perceba que não foi do organismo biológico que partiu a decisão de mudança tão drástica. A homeostase, a necessidade instintiva de restaurar o equilíbrio orgânico tende a encaminhar o ser para onde ele possa satisfazer suas necessidades mais básicas. Diante da necessidade de hidratação, o homem tende a estabelecer-se onde a água é garantida, não onde ele conhece de antemão sua ausência ou escassez. Pode ocorrer um esforço adaptativo, de forma que o homem saído de região úmida possa de fato ser reconhecido como modelo de perseverança. Contudo, que dizer desta vida de privação auto-imposta e gratuita? Que se deseja provar com isto? "Quero provar que eu sou livre"! Sim, mas e daí? A Liberdade é psíquica? Eis um terreno em que se trilha com maior cuidado. Nosso eremita que se submeteu a privações no deserto pode ter motivação que o leve a tal façanha. Esteja de acordo com alguma crença, poderá entender que as privações garantir-lhe-ão a vida futura. O que ele fará de uma vida futura, se não dá conta da que possui hoje? Ele pode basear-se em conclusões pessoais, é certo, mas poderá apenas referendar com a própria vida as conclusões alheias, ou pode simplesmente almejar a superação para afirmar que é melhor que os outros, ou que muitos, nesta ou naquela façanha. Fora as conclusões pessoais, percebemos aqui dois grilhões: ou o eremita está vinculado ao que outros disseram e ele não se mostrou forte o suficiente para superá-los; ou ele está preso a uma pequena vaidade de querer superar as demais pessoas seja no que for. No mundo moderno, este desejo de superação atinge o ridículo. Basta consultar o Guines Book para conferir do que se é capaz para ser "mais" ou "melhor" que os outros em coisas que não valem sequer nossa atenção, quanto mais nossa dedicação. Contudo, como estamos falando do humano e não de tecnologia, estamos falando também do livre-arbítrio, o que permite encaminhar nossos estudos no sentido de que o homem é tão mais livre de condicionamentos quanto mais adquira consciência de si como ser biopsíquico e espiritual. Apesar dos entraves, afirmamos haver um núcleo que, como diria Kipling, "não se rende e comanda: resistir!". A visão estreita a respeito do ser humano leva-o a concentrar-se nos aspectos de sua liberdade compreendidos pela biologia. Infelizmente, olhamos em torno e percebemos que, si para alguém é uma ofensa a privação forçada de seus passos, é-lhe irrelevante a proibição de assistir um filme ou ler determinado livro. O Código Penal e as leis penais vigentes punem condutas que restrinjam a liberdade de ir e vir, mas não lembramos de alguma que puna as restrições à liberdade de informação. Passamos pela vida vendo pessoas que não leem um livro "porque o professor não gosta"; "porque fulano não gosta do escritor"; "porque beltrano falou que não presta". O fato de alguém criticar um livro é-nos suficiente para desejar ao menos folheá-lo. Uma professora de Direito Comercial criticava veementemente determinado autor e recomendava clássicos que pouco deviam dizer já a seu tempo de formação. Fomos conferir e descobrimos que a matéria dada por ela, na sequência dada por ela, estava inteira nas obras condenadas. Focamo-nos tanto em nosso corpo e em nossos condicionamentos que esquecemos do quão livre pode ser nosso espírito. Tivemos oportunidade de conversar com um grupo de hóspedes do sistema penitenciário estatal e comentamos com eles a respeito do formidável livro O faz-tudo, de Bernard Malamud. Contamos que o prisioneiro não apenas é mantido indefinidamente em estreita cela solitária, como também a certa altura é acorrentado dentro dela, tendo ainda mais cerceada sua movimentação. Este estado dura tempo suficiente para ele recordar com nostalgia os meses em que podia varrer a cela e ler páginas avulsas do Antigo Testamento. Tal comentário provocou murmúrios entre pessoas que, apesar da evidente limitação à liberdade de ir e vir, bem ou mal possuem à disposição algum curso profissionalizante, uma biblioteca e acesso a reuniões de cunho religioso. O homem não nasce livre: adquire Liberdade. Esta Liberdade é assegurada pela Responsabilidade, que é a capacidade do ser para dar respostas às questões da vida, incluídos desde os aspectos últimos de sua existência até os fatos de seu cotidiano. Não apenas dar respostas, mas de não as dar e mesmo de rever aquelas dadas diante de outros valores. Arriscamos mesmo a dizer que a Responsabilidade é que define o homem como um ser livre. Diante do fato da vida ele poderá escolher a atitude que melhor expressará determinado valor. A Liberdade começa a definir-se como um sentimento e como preceito social. A pessoa quer gozar do sentimento de Liberdade mesmo que se envolva em situações estapafúrdias. Como preceito social, a Liberdade do indivíduo é verificável em contraposição ao seu papel na sociedade. Kardec registrou que, por viver em sociedade, ao homem já não é dado usufruir de liberdade absoluta. De fato, para virmos ao mundo já precisamos de duas pessoas. Os primeiros anos requerem ao menos uma ao nosso lado. Com o desenvolvimento pessoal, adquirimos maior ou menor autonomia ou independência. A menos que confeccionemos nossas roupas coletemos nossos alimentos e contemos nossas próprias histórias, já não podemos falar em Liberdade total. Ainda segundo as anotações de Kardec, a liberdade absoluta do homem só pode ser usufruída no pensamento: eis o reino em que cada um pode ser seu próprio Louis XIV. "Estar condenado à Liberdade", portanto, assemelha-se-nos a um exercício de retórica. Mantendo nossa visão teísta, passamos a perceber que somente esta inteligência ilimitada, que tudo criou sozinho, pode gozar de uma Liberdade absoluta. Tão absoluta que supera a questão da Liberdade x Não Liberdade. Como tudo criou, criou também o bípede implume que se esforça em encontrar algo que restrinja Sua Liberdade. Aquele que É não está adstrito a conceitos humanos. Apenas por escrevermos "Aquele que É" abriu-se como que um rasgo em nossa temporalidade e paramos por momentos tentando entender o que seria este supremo ser. Mesmo em passagem de aparente cerceamento do indivíduo, Cristo assegurou a cada um de nós a liberdade de decisão. Referimo-nos ao trecho em que afirmou: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me" (Lucas, 9, 23). A cada um é conferida a decisão: "Se alguém quiser vir...". Revela-se que aderir ao seu ministério ultrapassa questões de autoridade ou tradição. Quem de forma madura decidir-se por segui-lo deve ter entendido que há ampla tarefa a ser cumprida e que de nada adianta impor os limites da própria personalidade em aspectos desta tarefa dos quais o neófito sequer ainda tem consciência de existirem. Ao leitor mais familiarizado com processos seletivos para vagas de emprego, perguntamos: é o candidato quem determina o que a empresa deve fazer para que ele se digne a trabalhar para ela, ou ele é quem mui humildemente apresenta-se diante de uma estrutura prévia? Ricardo de Mattos |
|
|