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Segunda-feira, 17/8/2015
Silêncio
Ricardo de Mattos

"Aqui não se teme mais nada, senão a si mesmo" (Simenon).

Caro leitor. Caso deseje fazer uma experiência macabra envolvendo o autor destas humildes linhas, os passos são os seguintes. Primeiro, espere-nos entrar num estado de profunda introspecção, estado que atingimos ao tentar descrever a nós mesmos uma determinada pessoa, coisa ou situação e desta descrição fazer o estudo que nos compete. Segundo, tire-nos abrupta e ruidosamente deste estado: bata com força uma porta, chame o rapaz da companhia de luz para que ele esqueça seu dedo na campainha, grite, provoque o cachorro ou escolha algo pesado para derrubar. Ou faça como o pai que, de onde quer que esteja na casa, localiza-nos por meio de gritos e só para quando estamos ao seu lado ou gritamos por nossa vez. Uma versão interativa desta experiência envolve freadas bruscas de veículos na avenida diante de casa, acompanhadas de palavrões em enxurradas. O resultado é a alteração de zero a cem de nosso humor, uma irritação aguda acompanhada do aumento da frequência cardíaca e de um estado de abobamento no qual parecemos viver simultaneamente em duas dimensões: em uma, tentando preservar a meada de nosso trabalho; em outra, tentando situar-nos de novo no mundo. A precisa sensação é a seguinte: parece que somos fortemente sugados de volta para o corpo. Não se trata de alteração do estado de consciência nem de cochilos imperceptíveis: estávamos muito bem acordados e com a atenção concentrada num assunto.

Ansiamos pelo silêncio como satisfação de necessidade básica. Não o silêncio do mutismo imposto. Fulano exige o mutismo alheio porque sabe que não suportaria o confronto. Sabe que não possui fundamentos ou argumentos suficientes para sustento da vontade que quer fazer prevalecer sobre outras. Sicrano impõe seu próprio mutismo como gesto de revolta. Observa coisas acontecendo, com maior ou menor grau de prejuízo, apenas para afirmar, em triunfo, "que já sabia, mas que não adiantava falar". Isto não é silêncio, é estupidez.

Silêncio não significa ausência de sons. Ao contrário, quando podemos escutar determinados sons é que nos certificamos do silêncio. No preciso momento em que escrevemos, uma corruíra chia perto de uma janela e os carros deslizam civilizadamente no asfalto - ao contrário da motocicleta que, ao longe, identifica sua presença. Aqui e ali os pássaros conversam educadamente, sem chiadeiras que denotem rixa. Mesmo o bem-te-vi está desarmado. A arara da vizinhança está quieta - ao menos por enquanto - e as cadelas esparramam-se pelo rancho devido ao calor.

Melhor que isso, as manhãs. Seis horas o despertador toca. Após nossas abluções, protegemo-nos para sair à garagem em busca do jornal. Mesmo que o bem-te-vi esteja fazendo alguma demonstração bélica por meio do canto específico e de danças frenéticas, basta-nos assoviar imitando seu canto que ele para um momento para identificar o intrometido. Preparar o café da manhã tornou-se um ritual para propiciar a tranquilidade que queremos para nosso espírito no decorrer do dia. Em torno das sete horas o mundo externo começa a impor-se ao mundo interno, mas na maioria das vezes já estamos fortalecidos.

O mundo começa a impor-se pelo aumento da intensidade do tráfego. Ou mesmo que os carros ainda sejam poucos, já aconteceu de, antes das sete horas, passar em frente de casa um veículo tocando "no último" uma dessas músicas cuja letra reduzia as mulheres a um buraco copulável. Por outro lado, quando é a Natureza quem se apresenta, fá-lo agradando a alma com suas surpresas. Na última semana, ouvimos do quarto barulho semelhante a uma porta pesada rangendo. Ninguém mais acordado e o ruído repetia-se, revelava-se próximo: um "toc-toc-toc-toc" forte e rápido. Afastando a cortina, descobrimos o autor: um pica-pau deliciava-se no madeirame do telhado vizinho.

Silêncio não é ausência de diálogo. Por vezes diálogos intensos travam-se no silêncio entre pessoas que se conhecem profundamente. Um levantar de sobrancelhas revela reações e estados de alma. No livro O cachorro amarelo, Simenon observa que um jovem investigador não soube perceber certa reação de Maigret diante de um evento. Esta reação, relata o autor, era perceptível por meio da forma como o comissário dava baforadas ao fumar seu cachimbo. "Eu não acho", afirmou Maigret diante de interlocutores ansiosos. "Achar" é admitir que ruídos da alma escapem e afetem a condução de determinada questão.

Nossos diálogos serão mais produtivos justamente quando aprendermos a compô-los tal como são compostas as obras musicais. Tão relevantes quanto as notas são as pausas e a harmonia resulta quando ambas são posicionadas com expertise. Piaget observou que crianças de determinada idade, quando reunidas, não estabelecem diálogos, mas reúnem monólogos. Algumas pessoas não alcançaram este amadurecimento. Uma cliente dirigiu-se à companheira de nossos dias solicitando informação. Cada vez que ela abria a boca para responder, a cliente interrompia ampliando a pergunta ou antecipando respostas. Depois da terceira vez, interviemos: "é isto que ela está tentando explicar para a senhora". Silêncio para escutar; silêncio para refletir; silêncio ao emitir uma resposta e segurar as demais.

Ainda que seja necessário um regular isolamento, a busca pelo silêncio não implica em solidão. A solidão pode preencher-se de variadas cores, da patologia à revolta, da timidez à autopreservação. Rejeita-se a sociedade ou define-se a própria incapacidade de lidar com ela. O isolamento silencioso permite revigorar-se internamente para conduzir-se diante dos reclamos sociais. Auxilia o homem em sua tarefa de autoconhecimento para que possa dar respostas cada vez mais pessoais no meio social, definindo quem é o eu e quem é o outro, de forma que não se torne um encarnado médium de encarnado. Um poeta local escreveu certa vez: "ouço meu pai dizer ao meu filho, pela minha boca, as mesmas coisas que direi ao meu neto pela boca de meu filho".

No seu livro mais conhecido, Em busca de sentido, Viktor Frankl relata que em determinado campo de concentração da Baviera ele conseguiu identificar um local onde pôde isolar-se alguns momentos por vez. Embora o local fosse um recanto delimitado pela cerca elétrica e contíguo à barraca onde se empilhavam cadáveres para serem recolhidos, Frankl reunia ali as forças para continuar: "Aninhado ali eu contemplava - por entre a vinheta obrigatória do arame farpado - os vastos campos verdejantes e floridos, as distantes colinas azuis da paisagem bávara". Repara, leitor: apesar da tragicidade do meio e da época, ele ainda consegue falar em "aninhar-se". O pai da Logoterapia viria depois praticar a escalada esportiva. E é nas montanhas que outros filósofos retiravam-se para refinar seus pensamentos. Um deles, nosso querido León Denis, relata no livro O grande enigma: "A montanha é o meu Templo! Ali nos sentimos mais longe das vulgaridades deste mundo, mais próximo do céu, mais perto de Deus!". O outro, foi Nietzsche, que, a despeito do declarado ateísmo, afigura-se-nos como um dos melhores expulsadores de vendilhões do Templo que já encontramos.

Sei Shônagon, dama de companhia japonesa autora do gracioso Livro de cabeceira - ao qual assim nos referiremos apesar da tradução brasileira ter optado por O livro do travesseiro - arrola coisas que são detestáveis de ouvir: "pessoas de vozes desagradáveis que falam e riem sem reserva. Leitura de palavras encantatórias do dharani com voz sonolenta. Alguém a falar enquanto tinge seus dentes de preto. Pessoas sem nada de especial que falam enquanto comem. O aprendiz tocando a flauta hichiriki". Segundo as notas de rodapé, a tal flauta já teria, por si, um barulho desagradável à dama da corte; quanto mais, sujeita à imperícia do aprendiz. Fotos de mulheres com os dentes pintados de preto não nos despertaram atração alguma. Contudo, é um ritual, assim como o da comida, e falar durante estes rituais pode ser desrespeitoso.

O que nos chamou a atenção foram os dois primeiros itens deste pequeno trecho de Shônagon. Pessoas que, além de terem vozes desagradáveis, ainda falam sem reservas, "sem pudor", como se diria antigamente. Ou "sem noção", como se diz hoje em dia. Portanto, a despeito da voz do indivíduo ser desagradável, esta característica é contornável quando ele trata de um assunto com bom senso. Em seguida, seria detestável ouvir a declamação descuidada das preces do livro esotérico. Ou seja, é detestável tratar levianamente o que tange o sagrado.

Caro leitor, é no silêncio que nos deparamos com nossa porção divina. Mais que o silêncio externo, quando alcançamos o silêncio interno é que nosso espírito amplia a possibilidade de contato com seu mais nobre conteúdo e torna possível que este conteúdo emerja e fale sobre seus dias. Peregrinos neste mundo áspero, é comum não ficarmos muito à vontade quando uma voz alcança-nos os ouvidos e sentencia a respeito de algo que fizemos, omitimos, pensamos, falamos ou ainda planejamos. Falas breves, pois aprendemos a não lhe dar muito espaço, mas peremptórias e irrecorríveis. Tornando a Simenon, é o conteúdo com o qual o personagem Frank, do livro A neve estava suja tem contato quando consuma pesado golpe contra sua vizinha Sissy. Relata o escritor: "Não há mais nada, salvo um vazio que sobe, uma angústia que faz o suor jorrar em suas têmporas e que o obriga a levar a mão ao lado esquerdo do peito (...) Alguma coisa se quebra nele". Porém, esta mesma voz ensurdece-nos quando encontramos o sentido de nossa existência, exultando o ocorrido e prontificando a auxiliar-nos no necessário.

À guisa de conclusão

As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimi-o.

crio algo que não cabe em nenhum não ser.

(Wislawa Szymborska, poetisa polonesa)

Ricardo de Mattos
Taubaté, 17/8/2015

 

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