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Quarta-feira, 13/2/2002 Tristezas tropicais Daniela Sandler Futebol costumava ser o indicador de identidade brasileira no exterior por excelência. Era falar em Brasil e o interlocutor estrangeiro enumerava os nomes de jogadores, até mesmo nome de times. De uns tempos para cá, no entanto, não ouço mais “Romarriô” ou “Pêle” quando digo que sou brasileira. Ouço, isso sim, “caipirinha”. O drinque é servido em bares e restaurantes das principais cidades norte-americanas, e até mesmo nas secundárias. Para os americanos, ainda é novidade; para os europeus, já é bebida conhecida. Italianos, alemães, franceses contam ter experimentado caipirinha e até mesmo batida de côco. Os gringos ensaiam, orgulhosos de seu conhecimento, a pronúncia da palavra “cachaça” – que na maioria das vezes sai “cacha-ha”, pois o cê cedilha lhes parece indecifrável. Quando tento ensinar “pinga”, que é muito mais fácil de dizer, eles já estão na segunda ou terceira dose, e aí não tem mais lição de língua que pare em pé. O sucesso da caipirinha foi coroado por sua eleição como um dos drinques do ano de 2001, na última edição da revista Bon Appétit (uma das mais respeitadas publicações gastronômicas daqui). Sua popularidade pega a onda de produtos culturais latinos, que vão de danças como a salsa (não, forró ainda não chegou) à culinária de países da América do Sul e Central – em especial o que eles chamam de “new latino”, uma fusão de elementos tradicionais de vários países e técnicas clássicas de cozinha. A versão que os americanos preferem da caipirinha é diluída e adocicada, pois acham a mistura original forte demais. Apreciam a bebida por ser refrescante, leve e ter sabor vivo, colorido pelo limão. Verdade seja dita, muitos ainda confundem caipirinha e mojito (coloquemos a culpa em seu estado etílico, para não entrar na questão dos preconceitos...) Achei curioso ser associada à alegre bebida. Quão festivos devemos parecer! Quando não é a caipirinha ou o futebol, é samba, carnaval, capoeira ou bossa-nova – ah, e as mulheres, claro. Quantas vezes já não me deparei com sorrisos maliciosos, meio de lado, acompanhando a referência enigmática à “fama da mulher brasileira”... O sexismo explícito deste último comentário apenas magnifica os estereótipos mais sutis (ou nem tanto!) que permeiam as outras associações. O que significa ser visto como terra de festa, música, euforia coletiva? A minha pergunta tem dois sentidos. De um lado, o que isso significa para nós, que somos vistos; de outro, o que isso revela sobre eles, os que nos vêem. A outra face Antes mesmo que eu possa pensar muito nessas tristezas tropicais, das quais a caipirinha é apenas a mais recente, sou tomada por outra tristeza: a do reverso da moeda, o resto da história. Sim, porque não são essas as únicas referências que ocorrem aos estrangeiros quando se fala do Brasil. Várias pessoas já me perguntaram, em tom consternado, no último mês, como está a situação econômica na minha terra natal, e se eu estou preocupada com o fato de termos trocado de presidente três vezes em menos de um mês. Pelo visto, a confusão não é apenas entre caipirinhas e mojitos (eu já ia dizer que prefiro a confusão de bebidas, mas talvez ela tenha a mesma raiz da confusão histórica, econômica e política). Percebo que o constrangimento, quando explico que essas coisas aconteceram na Argentina, é muito mais meu do que de meus interlocutores. Para eles, aliás, desfeita a mistura de nomes, está resolvida a situação. Para nós, não. O problema é justamente esse, não é? – que os detentores globais de poder político e financeiro fazem a mesma confusão, e decretam morte por contigüidade. Até parece que estamos falando do cólera, e não de crise econômica... Voltando ao ponto inicial – se não é a crise econômica, então é a miséria, as criancinhas famintas, o crime, a Amazônia. Como se, para cada estereótipo festivo com que nos enfeitam, precisassem adicionar um negativo. Mas os clichês “bons” e “ruins” não são entidades opostas, antagonistas: muito ao contrário. São duas faces da mesma atitude. Eu, como brasileira, sinto-me tão desconcertada quando reduzem o Brasil ao buraco econômico como quando o reduzem à caipirinha. Estereótipos culturais são, de certo modo, inevitáveis. Toda cultura os produz, toda cultura os alimenta, e toda cultura é deles objeto. Se falo da nossa caipirinha, talvez você pense na Escócia e seu uísque, ou na França e seus vinhos. Mas você há de pensar também que a conotação do uísque escocês ou do vinho francês é muito diferente da conotação da caipirinha. Aliás, não só a conotação, como o atestam os mercados futuros de vinhos e adegas milionárias. Não – um copo de pinga com limão esmagado, gelo e açúcar não é exatamente a idéia que eu faço de “identidade nacional”. Como consolo, penso no nocaute etílico que a nossa caipirinha perpetra até mesmo em quem consome apenas o “suquinho”... Falando em identidade... A PBS, rede de televisão pública norte-americana, produziu e está veiculando uma série de ficção chamada A Família Americana (American Family). Como sinal dos tempos, rendendo-se à composição populacional do país, a tal família americana é de origem hispânica (em termos politicamente incorretos, “chicanos”, “cucarachas”). Quem interpreta a matriarca é Sônia Braga. Há algo de irônico nisso. Nós, brasileiros – nosso sotaque, nossa cultura, nossa população – somos uma nação indefinida, desconhecida. Estamos lá, no meio, na América. No início, quando eu tinha de preencher formulários de imigração ou matrícula, ficava na dúvida quando chegava ao item “etnia”: será que eles me acham “hispânica”? Não há uma categoria para “latino-americanos”, mas há hispânicos, como há negros – afinal, o critério é étnico. Mas o que é um hispânico? Será alguém colonizado por espanhóis? Descendente de astecas ou maias? Mas e os incas? E os tupis? Será alguém que fala espanhol? Mas e os argentinos, serão hispânicos? Ora! Mojitos, caipirinha, é tudo a mesma coisa. Daniela Sandler |
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