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Quarta-feira, 23/9/2015 Nova Gramática do Poder Marilia Mota Silva Nova Gramática Finlandesa, de Diego Marani, tradução de Eduardo Brandão, Companhia das Letras: o título desenxabido desafia qualquer beabá de marketing. Parece livro didático. Fala, sim, da complexa linguagem finlandesa, mas não é um livro-texto. É um romance. Modesto, menos de 180 páginas, capa de cores tímidas. Mas essa simplicidade se resume à apresentação do livro. Sua tese principal é complexa e difícil de resolver: Não temos identidade salvo por meio de uma lingua-mãe. A história, simples, emerge do caos da Segunda Guerra Mundial. In 1943, um homem, com ferimentos graves na cabeça, é encontrado em coma nas docas de Trieste. Não há indícios de sua identidade, a não ser um nome finlandês, Sampo Karjalainen, costurado na etiqueta da sua jaqueta de marinheiro e um lenço com as iniciais bordadas S.K . Recolhido a um navio-hospital alemão, ele é tratado por um médico finlandês que servia no exército alemão. Na Segunda Guerra, a Finlândia, temendo nova invasão dos russos, aliou-se aos alemães. Esse médico, Dr. Friari, tinha fugido de seu país em 1918, depois que seu pai foi morto como um traidor comunista, durante a guerra civil na Finlândia. Embora ressentido com seu país e exilado há mais de vinte anos, Dr. Friari ainda sente uma profunda identidade e amor por sua terra. Depois de algum tempo, seu paciente recupera a consciência mas não a memória, nem a linguagem. O médico, talvez por saudades de sua terra, sua situação de exilado, decide acreditar, baseado em tão poucas evidências, que seu paciente era mesmo finlandês. E passa a ensinar-lhe sua "língua nativa", com a esperança de que isso o ajude a se lembrar do passado . Feito algum progresso, e tendo que partir, o médico faz arranjos para enviar Sampo para um hospital militar em Helsinky onde espera que, cercado de finlandeses, ele consiga recobrar a memória mais depressa. Mas, embora acredite que está em sua terra natal e se empenhe em aprender o finlandês, sua história, seus mitos fundadores, embora frequente um bar onde faz alguns contatos e pequenos trabalhos para jornalistas que cobrem a guerra, embora conquiste, aos poucos, a capacidade de se expressar. É notável a capacidade do autor de criar verbalmente os estados psicológicos da não identidade. Sampo sente-se distante de si mesmo, sem raízes, incapaz inclusive de responder ao afeto de uma mulher que se interessa por ele. É um livro de amor à linguagem, de investigação sobre até qe ponto ela define quem somos. É um livro sobre a Europa de hoje, aquela babel de línguas, dialetos, com sua longa história de guerras, genocídios, limpezas étnicas, ódios seculares, onde, à medida que as fronteiras se atenuam, suplantadas pela Eurozona, mais cresce a necessidade de cada povo proteger sua identidade, o que o faz únicos, suas tradições, sua linguagem. A Europa de hoje, que se vê às voltas com multidões de imigrantes e refugiados - com outros códigos de comportamento, valores, religiões, e de algum modo, tem que assimilá-los. E eles tem, como Sampo, que adquirir outro idioma, criar novas raízes, nova identidade. Todo imigrante sabe até que ponto isso é possível. Se é possível. Um romance sombrio, sobre perdas, sobre não ter. É a história da Europa. " Muitas vezes, inclusive dentro de um mesmo povo, a pátria de um nega a dos outros.Nasce disso a loucura que reduziu a Europa a cinzas. Déspotas disfarçados de patriotas impõem a retórica de seus mitos e sentenciam que fora deles não há amor à pátria. A pátria se reduz assim a um perímetro de fronteiras que cada uma das pátrias proclama sagradas contra todas as outras, às vezes até em nome de Deus. Os líderes que hoje se arrogam o mérito de ter reunificado uma Finlândia dividida entre vermelhos e brancos não veem que fronteira muito mais profunda cavaram entre nossa gente". Quando se pensa nisso, na quantidade de povos, idiomas, etnias que convivem naquele território, na fluidez de suas fronteiras, na violência de sua história, a comparação conosco é inevitável. Temos um continente inteiro, onde caberiam inúmeras Europas, falando apenas dois idiomas! E idiomas tão parecidos que, com pequeno esforço, nos entendemos. Não há abismos entre nós, não há fanatismo, segregação de raças, religiões, nacionalismos. As mágoas, se existem, se referem a futebol. Não duram mais que uma cerveja. Um patrimônio admirável, mas que não significa nada se não beneficia seus habitantes. Se não se traduz em segurança, confiança nas instituições, boa escola para as crianças, postos de saúde, água e esgoto, ruas calçadas e estradas, a infra-estrutura básica. Para todos. É possível mudar essa história de fracassos? Hoje vivemos mudanças tecnológicas que dão voz aos que não tinham antes, aos 99%, à maioria, não mais silenciosa. Esse é um fator novo que está nos transformando como sociedade, e com isso, também, deve mudar essa estrutura viciada de poder e privilégios escabrosos que, desde a colônia, nos mantém no atraso. Podemos aprender com a história da Europa, com o que acontece em todo o mundo, e nos unir nesse trabalho. PS.: Diego Marani, linguista senior da União Europeia ( EU), escreveu alguns livros em Europanto, uma linguagem que ele inventou, meio de brincadeira, juntando palavras de várias línguas. Mais ou menos como nosso portunhol, que praticamos, temerariamente, "duela em quem duela"! Marilia Mota Silva |
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