|
Segunda-feira, 5/10/2015 Have a nice day Adriane Pasa Morador de rua em Vancouver "A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota." Jean-Paul Sartre Fui-me embora para Pasárgada, enfim. Lá não sou amiga do rei, mas tenho visto de residente permanente, o que já é alguma coisa. Saí do Brasil, disse adeus a todos e a tudo e agora vivo em Vancouver, no Canadá, com meu marido. Estou na cidade há um mês e meio, mas já estive aqui antes. É uma cidade fantástica, há anos está na lista das dez melhores cidades do mundo para se viver e este ano está de novo na terceira posição. Acho que vou falar algumas vezes dela por aqui. Ah, aviso que este post não deve ser lido por aqueles que veneram o Brasil, acham que é a terra mais abençoada do mundo, que o povo é feliz, dormem com a camisa da seleção 7 X 1 e acham - erroneamente - que todos os que vivem fora ou falam bem do primeiro mundo estão "comparando" (injustamente) as coisas ou sendo esnobes. Nunca fui patriota, nunca fui romântica a respeito disso, sempre desejei conhecer outras culturas e o Brasil para mim é como aquele amigo que você até curtia, dava umas chances, mas fez tanta cagada que hoje em dia fica até feio defender, sabe? Em primeiro lugar acho uma tremenda bobagem esse discurso de não poder comparar, pois a vida é pura comparação. Não importa se são alhos e bugalhos, mas o sentimento contido ali, não sei se vocês me entendem. A felicidade, aliás, se baseia em grande parte nisso e a evolução também, comparando, vamos mudando. Mas eu não vou por esse lado, não costumo comparar diretamente e é burrice fazer perguntas do tipo "por que no Brasil não é assim?" A gente sabe. Estamos todos carecas de saber os motivos. Embora por ser uma brasileira falando da minha experiência em outro país a questão da comparação está implícita (coisa que o patriota cego e romântico não entende). Acho um saco o povo do time que adora achar beleza em coisa ruim e adora achar defeito em coisa boa, nunca entendi bem isso, talvez uma forma de aliviar a dor, uma defesa, sei lá. Detesto escutar coisas do tipo "ah, mas que graça tem viver sem a emoção do perigo do dia a dia, do caos...". What??? Acho sinceramente que não tem verdade nisso e a risada que vem junto é sempre meio nervosa. Eu sou mais prática, talvez. Adoro o óbvio, o certo, o justo. E as coisas bonitas porque realmente são bonitas e os lugares seguros porque realmente é o que todo mundo merece, até os chatos. E é esse recorte que vou fazer aqui, falando de um aspecto de Vancouver que me toca profundamente e que não preciso ter vivido muito tempo aqui para descrever: a sensação de segurança. É impagável se sentir seguro, tranquilo, sem medo. Para todas as outras coisas existe Mastercard. Acho que a maioria das pessoas que buscam o Canadá como segunda casa é por esse motivo. Os brasileiros que estão aqui, em sua maioria, são qualificados profissionalmente, tinham carreiras sólidas e boas no Brasil, não vêm para cá em busca de fortuna, fama ou alguma falsa ideia de "sonho dourado". Todos com quem eu conversei até agora repetem a mesma coisa "queria morar num lugar seguro, pacífico (...) Para mim e para meus filhos". Porque se formos pensar bem, de que adianta se matar de trabalhar para ter uma vida boa no Brasil (e se tem mesmo quando se trabalha como um camelo) se todos acabam se encontrando no mesmo semáforo onde serão assaltados? E o abismo social é tão injusto neste aspecto porque a diferença do rico e do pobre é que o rico está preso dentro de um carro blindado e o pobre está preso dentro de um ônibus prestes a pegar fogo. E a segurança vai muito além do que se imagina, porque ela afeta quase tudo no nosso dia a dia, em todos os aspectos. Fora o fato de que morar num lugar seguro faz sobrar um espaço enorme no nosso "H.D. mental" para pensar em outras coisas e eu acredito que a gente passa a ser mais saudável mentalmente e até espiritualmente. No Brasil, eu morava em Curitiba, uma das cidades mais violentas do país e com muitos moradores de rua. Vivi lá durante 39 anos e infelizmente vi a cidade evoluir em crimes e se tornar muito perigosa. Então, para dar uma dimensão de como as coisas mudaram na minha vida vou listar algumas coisas (em notas mentais) que eu deixei de pensar e fazer aqui em Vancouver e que todo mundo merecia deixar de fazer também, em todo o planeta: Questões logísticas e financeiras: "Não vou andar por essa rua porque é muito perigosa, melhor virar na outra." "O pessoal vai se encontrar naquele barzinho à noite...putz, vou ter que pegar um táxi." "Perdi o ônibus, droga, não dá para ir a pé nesse lugar a essa hora, muito arriscado." "Galera, fecha os vidros do carro aí porque esse pedaço é sinistro." "Ai droga, semáforo fechado a essa hora da noite, vou passar, foda-se." "PQP não tem um estacionamento sequer com vagas...vou ter que deixar na rua." "Ai, moço, 5 reais pra cuidar do carro?" (e a amiga "melhor você pagar senão eles vão riscar teu carro) "Quanto é o preço do alarme???" "O quê? Tudo isso pra instalar uma câmera?" (o síndico, na reunião de condomínio) "Gostaria de informá-los que a colocação da cerca elétrica será paga em 12 parcelas de..." "Vixe, tem uns mal encarados ali no meu portão, vou ter que dar umas voltas e esperar." "Me liga quando estiver aqui em frente, não posso esperar lá embaixo porque é perigoso." Questões de gênero e violência contra mulher: (na rua, de saia curta) "PQP esses caras, que saco, não dá nem pra sair de casa mais com uma simples saia." "Putz, esse ônibus tá muito cheio, melhor colocar a mochila nas costas." (no trânsito) "Por que esse cara tá me fechando, PQP, nossa, que cara de louco, melhor deixar pra lá." "Ai esse pedaço aqui da rua tem que passar voando, apura o passo aí, amiga." "Não entro nesse lugar sozinha nem que me paguem." "Tenho que esperar fulano para ir comigo até ali, sozinha não vou nem a pau." Escondendo ou disfarçando eletrônicos, dinheiro, cartões, etc: "Celular aqui no bolso, é, tá discreto...pagamento por dentro da calça na cintura, cartões...ah, vou deixar esses cartões em casa, melhor." "Putz, deixei meus cartões em casa hoje, não vai dar para comprar isso..." (celular dentro da bolsa, fones de ouvido) "ai, saco, não consigo trocar a música, droga. Ai, tá vindo o ônibus." "amiga pra que você leva duas bolsas no carro?" "ah, não, essa aí é pra enganar ladrão, caso a gente seja assaltada". "você acha que essa mochila tá dando muita bandeira?" (tirando fotos com a câmera profissional) "ai, saco, estão vindo uns mal encarados ali (esconde a câmera), putz, perdi a foto!" Impossibilidades de diálogo e outras perturbações: "amor, não posso falar no celular agora, estou no banco." "moço, eu já tirei tudo de dentro da bolsa, mais as moedas do bolso, mais as chaves, mais os óculos e a porta ainda trava!" "amiga, não deixa tua bolsa nas costas da cadeira não, que andam roubando restaurantes agora" (No salão de beleza) "vamos lavar o cabelo?" "sim, só deixa eu pegar aqui minha bolsa" "ai vamos sentar lá fora, está um dia tão lindo" "ah, não, muito perigoso" (Na lanchonete/café/praça de alimentação) "seu pedido está pronto, moça" "PQP, se eu deixo a bolsa roubam, se eu vou com a bolsa, roubam meu lugar" Ah, e tem a clássica "Vamos até ali comigo? Tenho medo de ir sozinha." Nossa, poderia citar mil coisas. Eu não tenho filhos, imagina como é para quem tem? Imagina quantas coisas a mais ocupam o "H.D. mental" dos pais e mães? Imagina para quem mora em lugares infinitamente mais perigosos que Curitiba? E os diálogos na hora do almoço, no happy hour, em casa? Sempre tem papo sobre como sobreviver à violência, novas técnicas de assalto, o crime da vez. E acabamos nos deixando levar por isso, porque faz parte. É parte do cotidiano, e quando não é, é de alguém próximo. Sabem, é triste. Triste pensar que a falta de segurança afeta tantos aspectos da nossa vida e também afeta a confiança que temos uns nos outros. Aqui em Vancouver, eu não preciso pensar em nada disso. Eu não preciso desenhar uma rota mental do caminho mais seguro antes de sair de casa. Eu simplesmente saio e vou. Eu simplesmente visto a roupa que eu quiser e vou. Eu simplesmente vivo meu cotidiano sem afetar minha logística, minha moral, meu corpo, minha vestimenta e o que eu estou carregando comigo. Esses dias, na rua, me peguei ainda olhando as mensagens do celular sem tirá-lo totalmente da bolsa. Meu marido me disse "relaxa". Isso soou quase como um "você está livre". Porque viver num lugar seguro e pacífico é sentir-se, sobretudo, livre. Sentir que seu semelhante não vai te maltratar, te matar, te abordar com violência, seja verbal ou fisicamente. Sentir que existe empatia, civilidade, limites. Sentir menos medo e esse "menos" é muito grande. Vancouver tem problemas? Claro, como toda grande cidade. Drogas, moradores de rua (muitos, aliás), doentes mentais, dependentes químicos e estrangeiros perdidos aparentemente sem saber para onde ir. Mas ninguém te invade, ninguém te violenta, ninguém te rouba, ninguém te faz mal. Tem uns malucos aqui que sinceramente, no começo você acha que eles vão comer sua cabeça. Mas não. Eles passam por você, conversando com seus amigos ou fantasmas imaginários e seguem seus caminhos. Aqui existe uma política de inclusão. Todos os dependentes químicos, moradores de rua e doentes mentais convivem em sociedade e usufruem dos serviços como qualquer pessoa. Você vai a um café local e o morador de rua está ali também. Você pega ônibus e um esquizofrênico está ali também. Talvez essa estratégia de inclusão social crie um sentimento pacífico, acho que não é só porque é um país rico. Ou seja, todos estão no mesmo barco, são iguais e merecem respeito, por isso se respeitam. Muitos podem até pensar "ah, mas imagina eu, conviver com esses tipos". É, isso traz paz. Pertencer a algum lugar é o que todos queremos. Já é uma vida desgraçada ser doente ou pobre e ainda ser excluído? Maltratado? Acho que eu ia querer matar todo mundo. E aqui também ninguém faz nada porque se fizer, a polícia chega em cinco minutos com vários carros, mais o corpo de bombeiros e mais a ambulância. Esses dias aconteceu alguma confusão aqui na frente do prédio onde moro, de madrugada, olhei pela janela e tinha cinco carros de polícia, mais bombeiros, mais ambulância. Pensei "é um terrorista". Acordei o meu marido e disse "meu Deus, olha isso". Ele falou "é assim mesmo, deve ser algum bêbado". Dito e feito, era um coitado que estava fazendo arruaça e se ferrou. A polícia teve que levá-lo, mas sem violência. A presença da polícia aqui é algo bacana. E muitos andam à paisana, inclusive com carros comuns. No metrô e sky train há um alarme silencioso que quando acionado, a polícia vai até lá. E se acontece algum crime aqui como um homicídio, por exemplo, há uma comoção muito grande, todos se abalam. Felizmente, assistir ao telejornal local é uma espécie de "limpeza mental" para mim. A segurança não se resume em só "proteger de bandidos". Ela está presente em tudo, porque a cultura aqui é da confiança. Ninguém te pede comprovante de nada, se você esquece algum documento, um comprovante de residência, muitas vezes já ouvi um "tudo bem" e a pessoa acreditou na minha palavra. Não parece algo óbvio? Uma moça chegou a me dar um recibo de algo que eu nem tinha pagado ainda, e disse "pague, volte aqui à tarde e apresente este recibo para quem estiver aqui, pois eu não estarei". Esses dias uma vizinha brasileira que mora aqui no prédio veio aqui em casa e começou a dizer que estava de saco cheio de Vancouver. Pensei "só pode ser louca". Reclamou dos maconheiros (aqui a maconha é "quase" liberada, está aguardando uma lei sair e tem mais lojas de maconha medicinal do que cafés da rede Starbucks), reclamou dos imigrantes, reclamou dos "bichos-grilos", reclamou dos preços das coisas. Quando ela saiu eu disse ao meu marido "essa mulher é meio esquisita, não?", "é sim, ela é meio histriônica". Fui procurar na internet o que era isso, e segundo a Wikipédia, é "um transtorno de personalidade caracterizado por um padrão de emocionalidade excessiva e necessidade de chamar atenção para si mesmo, incluindo a procura de aprovação e comportamento inapropriadamente sedutor, normalmente a partir do início da idade adulta. Tais indivíduos são vívidos, dramáticos, animados, flertadores e alternam seus estados entre entusiásticos e pessimistas." Ela deve ser do time que ainda adora o 7X1, sofre de nostalgia, mas em Vancouver chega todo dia em casa sã e salva, entre nuvens de maconha e pedintes dizendo "thank you, have a nice day". Adriane Pasa |
|
|