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Sexta-feira, 13/11/2015 O primeiro assédio, na literatura Marta Barcellos O #primeiroassedio que sofri foi uma banalidade. Começava a andar sozinha de ônibus, estava no ponto, quando um carro encostou e o homem ao volante pediu uma informação. Procurava por uma rua próxima, que eu conhecia. Expliquei o caminho, orgulhosa de saber, e ele perguntou se eu tinha gostado. Não entendi. Então ele apontou para o próprio pênis, que estava para fora da calça comprida. Como todos que estiveram no planeta Terra da internet nas últimas semanas sabem, milhares de mulheres descreveram como foi o primeiro assédio que sofreram. Relatos terríveis _ e eram os primeiros. Episódios que mais pareciam uma espécie de iniciação ao fato/fardo de ser mulher. Naquele dia remoto, no ponto de ônibus, a menina que eu era ficou paralisada, enquanto o carro esportivo saía em disparada. Como se repete em vários relatos, eu "morri de vergonha". Não contei a ninguém. Nem saberia direito o que contar. Obviamente não é banal uma criança ser forçada a olhar um órgão sexual masculino. Em qualquer circunstância. Quando comecei a ler os relatos, porém, constatei: minha história sequer era original. Existiam algumas quase idênticas, inclusive com o sujeito dentro do carro pedindo informação. Banal assim. Mas banal pra quem? Os novos movimentos feministas estão por aí fazendo bonito, com estratégias bastante efetivas e criativas para fazer a sociedade finalmente questionar tanta banalidade. Palmas, muitas palmas, para o Think Olga, que lançou a campanha #primeiroassedio, como reação ao assédio virtual do qual foi vítima uma menina de 12 anos que faz receitas em um reality show culinário. Palmas, muitas palmas, para a minha professora Giovanna Dealtry, que vai reunir os relatos em livro. E palmas também para o ENEM, que por coincidência pautou o assunto na mesma semana, em sua redação, obrigando 7 milhões de jovens a refletir sobre a persistência da violência contra a mulher. É preciso pensar coletivamente, sem dúvida. Mas, uma peculiaridade sobre o "tornar-se mulher", depois da banal e terrível "iniciação", é que compreendemos imediatamente a necessidade de nos protegermos. Individualmente. Comecei a pensar sobre este assunto quando a minha filha entrou na idade "de risco", ou seja, naquela fase em que as meninas já são grandes o suficiente para andarem sozinhas mas pequenas para saberem lidar com o inevitável: os primeiros assédios. Coincidiu de eu estar fazendo a especialização em literatura na PUC (que me empurraria depois para o mestrado) e a professora Flávia Vieira indicar a leitura de um conto de Clarice Lispector, de um livro que eu lia com frequência na juventude. Mas como eu não me lembrava de "Preciosidade"? Estranho. Corri para o meu Laços de família, páginas despencando, e reli o conto. Fiquei paralisada. Eu 'sabia' exatamente o que era 'aquilo'. Estremeci com cada palavra suspensa, cada pensamento confuso da personagem _ uma menina de 15 anos. Fui remetida ao turbilhão dos primeiros assédios e o pavor de ser assediada novamente, até que aquilo fosse naturalizado como condição feminina, na qual podemos apenas traçar estratégias de proteção. E, o mais assustador: depois de validar aquele sofrimento antigo, chegava a hora de orientar minha filha. Ensiná-la, entre outras coisas, a pressentir uma rua deserta, antes dos primeiros passos sem volta. Pois é numa rua assim, ainda escura pela manhã por causa do inverno, que a personagem de "Preciosidade" se dá conta do perigo. Perigo que ela aprendeu a driblar em cada instante do dia, no ônibus, na escola. Perigo que, naquele alvorecer, precisará enfrentar, equilibrada na precariedade de sapatos que pareciam ser "ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera". Lembro-me que, depois da leitura feita pelo grupo da especialização, surgiu uma polêmica: a menina fora estuprada? Afinal, o que acontece quando ela vai ao colégio mais cedo do que "deveria" e cruza com dois homens na rua escura e deserta? Clarice não esclarece. A literatura, a melhor literatura, nunca esclarece, não quer esclarecer. Que tipo de apaziguamento nós, leitores estremecidos, estávamos buscando com aquela polêmica redutora? Saber se houve ou não penetração, desvirginamento, a ruptura do hímen que marcará a pobrezinha? Se ela sobreviveu ao ataque "intacta"? Não reproduzamos as bobagens do passado! No conto, o que interessa é o que se passa na cabeça e no corpo da personagem - um lugar no qual Clarice nos coloca com delicadeza. Delicadeza que se mantém do começo - um despertar "vagaroso, desdobrado, vasto" - ao desfecho magistral da narrativa: "Até que, como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, de ser preciosa. Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo." "E ela ganhou sapatos novos." *** Como fazer propaganda do primeiro livro de contos depois de mencionar a obra prima Laços de família? Complicado. Mas o lançamento em São Paulo se aproxima, e o livro deve ter suas qualidades: ganhou o Prêmio Sesc de Literatura. Antes que seque, editado pela Record, será lançado em 7 de dezembro, segunda-feira, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. O evento começa às 19h30 com um bate-papo comigo e Sheyla Smanioto, vencedora na categoria romance que estará lançando o seu Desesterro. A mediação será feita pela escritora Paula Fábrio. Duas mulheres vencedoras no Prêmio Sesc: não deve ser coincidência. Marta Barcellos |
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