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Terça-feira, 1/12/2015 A escrita boxeur de Marcelo Mirisola Jardel Dias Cavalcanti ![]() A metáfora de um país que nunca acaba de ser construído, onde "cada construção já é ruína", está não só na capa mas por todo o novo livro de Marcelo Mirisola: "Paisagem sem reboco", publicado pela editora carioca Oito e Meio. Não adianta entrar no ringue achando que vai ganhar. Logo no primeiro round, o maior boxeador da literatura brasileira contemporânea, Marcelo Mirisola, vai esfacelar suas crenças, suas certezas, suas pieguices, seu bom mocismo mental (ou padrão politicamente correto e burro), seu retardamento cultural, seu modus vivendi de anta... tudo vai cair na lona, e logo na primeira porrada. Como disse Aldir Blanc, "Mirisola não é odara" e se você enfrentá-lo "perderá os dentes". "Não existe vacina para a babaquice", escreveu Mirisola no seu livro de crônicas "O Cristo Empalado". O seu estilo, ele confessa no livro citado, "existe para infernizar a vida daqueles que não têm talento". Não é diferente em "Paisagem sem reboco", onde o empalamento continua... inclusive contra aqueles que frequentem o brechó da literatura brasileira. Em "Paisagem sem reboco", o autor publica crônicas, ensaios e contos que já foram anteriormente publicados em outros veículos como jornais, revistas, sites. Segundo o autor, como "não deu para enfiar tudo no Cristo", o livro que agora publica é uma espécie de continuação daquele. Mirisola não se recusa a falar de sua escrita ao comentar o que é o seu novo livro: "o que falta de reboco a essa paisagem, sobra de personalidade. Uma personalidade esquizofrênica (...) mas original, pulsante, cheia de novos empalamentos e desaforos para satisfazer e/ou contrariar (tanto faz) os mais diversos gostos e preencher os mais insuspeitos orifícios." Talvez não exista escritor no Brasil que goze de tamanha liberdade de falar sem freios, ou que saiba o lugar reservado à liberdade que só a literatura pode proporcionar, como Marcelo Mirisola. Ele sabe disso: "Ora, sou um écrivain! (...) O que mais eu poderia querer? Aqui, tenho a liberdade para tripudiar de mim mesmo, virar o mundo do avesso, mentir e dissimular e até ir em busca da verdade (...) aqui não preciso acreditar em mim, e - às vezes - amparado pela verossimilhança, dispenso redes de proteção, posso desdenhar dos céus e sobrevoar abismos infernais, somente aqui, como escritor, sim, porque adquiri essa condição - não é para qualquer pangaré, vou logo avisando (...)". Com essa liberdade ele calça suas luvas/escritura de boxeur e faz valer o preço da liberdade (que pode ser dura para ele em consequências no >grande monde literário), desfazendo os mitos que nos rodeiam, como, para ficar apenas em um exemplo, o da alegria brasileira: "O ódio sempre esteve presente -e, embora nunca tenha sido prerrogativa de preto, branco, nem de monge, nem de executivo, ele, o ódio brasileiro, sempre foi muito bem preservado em escaninhos, divisões, muros e camadas de hipocrisia. Negá-lo é fomentar mais ódio. As pessoas o guardam como se fossem joias de família. Quem quiser pode chamar de alegria brasileira." Esse ódio, que camufla-se como um camaleão, desnuda-se na prosa de Mirisola: "O importante é não esquecer que o ódio nos espreita e carrega milhões de disfarces e boas intenções, o ódio brasileiro afaga, convida pra ir jantar e é o melhor anfitrião do mundo, o ódio é doce como uma compota caseira e sempre concorda contigo, ele é o rei dos elogios e às vezes aponta pequenos defeitos para valorizar as virtudes que nem você sabia que tinha, o ódio é surpreendente e encantador, ele tem muita paciência, o ódio é desprendido e jamais vai perder o timing, ele é a Vovó da Casa do Pão de Queijo, ele é o bom vizinho que planeja seu fim toda vez que o beija na face e, uma hora - pode escrever - ele vai dar o bote e estragar tudo, de leste a oeste e de norte a sul. Ininterruptamente." Rancorosas algumas vezes (oh! - e como é necessário), com humor outras vezes (humor negro também), as crônicas e contos do livro vão golpeando aqui e ali nosso fígado, fazendo ver sob o ponto de vista que, na maioria das vezes, tememos ver. Mas com o olho inchado (tantas porradas) avançamos na leitura, aprendendo a ver torto aquilo que o mundo insiste em ver (falsamente) como certo. ![]() Mesclando palavras-bílis com divertidas tiradas irônicas, o livro não nos cansa jamais em sua crítica radical. Três pequenos exemplos onde o pensamento se dobra nessa via de mão dupla: "Mas, pensando bem, em qualquer época e circunstância, eu não resistiria à subversão. Fazer o quê? Eu olho pra bunda das gostosas." Ou: "confete e arte para todo mundo, consta que, agora, vender a alma é sinônimo de qualidade de vida, postura mesmo, que emana credibilidade e crédito." E no texto "Qual é a droga?", onde fala da inutilidade da polícia e da falsa moral em relação às drogas ilegais: "Você percebe que aqueles caras que vestem fardas e cultivam a ordem, a disciplina e a hierarquia não servem para nada; na realidade eles não passam de crianças sádicas e fetichistas que fazem tanto sentido quanto o traficante e os heróis da Marvel que tomam conta dos seus sonhos de Cinderela. Pare pra pensar: um meganha que enquadra suspeitos e se dirige a outro meganha como tenente, cabo, capitão, um cara que prende e faz uso de algemas e técnicas de imobilização, um sujeito que acorda de madrugada para se perfilar diante de um pedaço de pano colorido, o mesmo tipo que obedece a ordens unidas, que desfila de boina na avenida, pense comigo: para que um xarope desses, que depende de uma voz de comando até para se manter sobre as duas pernas, presta na vida? Para cuidar de mim é que não é./ Um apelo. (...) Abram franquias do Parque da Mônica, chamem a SuperNanny, deem massinhas e pincéis atômicos para entreter essas crianças mal-humoradas que adoram uma fardinha./ E, do outro lado e ao mesmo tempo, transformem os traficantes em comerciantes, livrem os viciados da marginalidade e deixem o capitalismo cuidar do resto. Se funciona com o Carrefour, o Wallmart, as Casas Bahia e as Lojas Americanas que vendem DVDs da Ivete Sangalo e do Gustavo Lima, porque não ia dar certo com as outras drogas?" Outro capítulo interessante do livro de Mirisola é sobre o linchamento equivocado de Gerald Thomas no episódio no programa Pânico e as consequências dessa atitude fascistóide nas tramas rocambolescas da coletividade brasileira. "A volúpia de dedurar, buscar refúgio no coletivo e apontar o dedo virou marca registrada nos anos zero-zero e - parece - tem tudo para se consolidar ferozmente nos próximos anos." Mesmo não fazendo parte do "cordão dos puxa-saco ilustrados, todos em uníssimo cacarejando Géééérald, Géééérald. Como se o Géééérald fosse o esperma sagrado do Santo Graal via nossa goela abaixo, puta porre dos infernos", Mirisola vai em defesa do diretor de teatro e questiona a posição "linchamento do bem" de Laerte, "o travesti da revista Piauí, mimo de dez entre dez intelectuais", que "aproximou Gerald Thomas da figura infame do Paulo Maluf". ![]() Então, diz Mirisola sobre Laerte: "O cara que salva - a palavra é essa mesmo, salva - o mundo com seu humor, de uma hora para outra, se transforma num inquisidor medieval e condena a outra parte baseado em superstições. Laerte caiu feito um pato na armadilha do suposto inimigo porque - tese minha - existe uma fixação justiceira que o cega e diz de antemão e preconceituosamente que toda e qualquer piada que trata de minorias é desqualificadora pela própria natureza (superstição). (...) Justo Laerte acabou se transformando numa espécie de Torquemada da piada alheia". E Mirisola, dando um banho em qualquer sociólogo de academia, aponta, contracorrente, através dessa crônica, os perigos que incorremos nesses "linchamentos do bem": "a patrulha que não dá trégua e acusa e condena sem fazer distinção apenas porque se sente ameaçada em sua pureza quando, na verdade, ela mesma - na prática - se torna instrumento efetivo do mal que atribui ao adversário." O espaço de uma resenha é pequeno para desvendar o espírito crítico e mordaz de Mirisola que aparece em "paisagem sem reboco". Deveríamos falar das entradas renovadoras em leituras de Tolstói, Orwell e Kafka, e dos contos e crônicas que descascam as paredes artificiais de um Brasil de celofane, mas que esconde nas suas incongruências uma realidade sem reboco, mas o espaço impede. O que sugiro é que se compre o livro para aprender a pensar sem os entraves dos superegos que abundam por aí, sejam eles móveis (camburão), intelectuais (o >grande monde da cultura), ideológicos (o politicamente correto) etc, etc etc. Jardel Dias Cavalcanti |
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