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Sexta-feira, 15/1/2016 Com quantos eventos literários se faz uma canoa? Ana Elisa Ribeiro Eventos literários. Estamos cheios deles. Não, não quero dizer "cheios" como quem diz exaustos, cansados, enjoados ou enojados - o que seria pior. Estamos com farta oferta, é isso. Muitos eventos literários pipocam aqui e ali, por todo lado, como deveria sempre ser. De norte a sul, e em todos os pontos cardeais, é possível ouvir falar de eventos literários, com profusão de convidados, horários, temas. Embora tais eventos nem sempre apresentem novidades... Para que serve, então, um evento literário? Tenho um amigo poeta que pensa assim: o público mais amplo não conhece a literatura contemporânea. Quase tudo é inédito para todos. Sendo assim, penso - eu - que um evento literário sirva para que as pessoas menos ligadas às artes da palavra tenham a oportunidade de ver e ouvir escritores atuantes de que dificilmente ouvirão falar na grande mídia, na escola ou no boteco. De fato, muita gente sentada na plateia do evento literário está ali para ouvir, pela primeira vez, algum autor já badalado, premiado e queridinho, mas apenas de um círculo concêntrico já ligado ao campo literário. E pode ser bem interessante. E pode ser até que algum livro se venda depois disso. E siga-se um autógrafo a um desconhecido recém-leitor. Strike! Afinal, a batalha não é essa? Já outro amigo diz: mas os eventos precisam chover no molhado. O público mais amplo é chamado pelas coisas que já conhece e já lê. Pegar o autógrafo da celebridade literária (e me esforcei aqui para não pendurar aspas em algum termo) é já motivo suficiente para pintar naquele evento. Então vamos lá. Daí a mescla importante (e não é ironia) entre autores dos quais as pessoas nunca ouviram falar - a despeito de serem badalados & premiados - e autores conhecidos, com altas tiragens e vendagens ao longo do ano, inclusive os sem muita "literatura". Às vezes até frequentadores das listas de mais vendidos das revistas brasileiras - que não são promessas de listas literárias, são listas de mercado, ora, bolas. Misturemos então o comercial e o não-comercial ou o artístico e o não-artístico. Será que é assim que funciona? Para muitos, é. Para outros, isso é uma grande bobagem e um enorme preconceito. Nos anos 1990, lembro de passar por um evento acadêmico na Unicamp cujo tema era - e sempre é - a leitura. O debate começava a se abrir. A ideia era discutir, não sem polêmicas, esse papo de que a máxima repetidíssima de que "o brasileiro não lê" é um discurso, e não uma verdade absoluta; e um discurso que precisa ser combatido. A questão então era: o que é "ler"? O que o brasileiro lê, então? É que uns preconizam que a "verdadeira leitura" é essa das artes, da sofisticação, do cânone literário; outros pensam que é preciso buscar e conhecer as práticas de leitura reais, sociais, que ocupam mesmo as cabeceiras e as mochilas das pessoas. Pois não é que se o critério mudar... mudam também os números e as ideias? Moçada lendo calhamaços aos montes, pedindo livro de Natal, trocando leituras com amigos, mas tudo "besteira". Enquanto isso, escritores de "alto padrão" fazem tiragens de 100 exemplares e ganham prêmios até robustos, mas sem serem amplamente lidos. Será que é uma espécie de compensação pelo que não venderão? E as livrarias? Quererão expor logo esses que ninguém conhece? Lastimo que as pessoas leitoras não acompanhem as páginas de nossos raros segundos cadernos. Muitos escritores bons frequentam ali e dão entrevistas e noticiam seus lançamentos. E muitos são mesmo ótimos. Não são apenas amigos do jornalista do caderno de cultura. Muitos são mesmo bons nas artes da pena. E vá lá: seria mesmo legal que muitas pessoas abrissem seus leques, o que não significa abandonar os vampiros e os bruxos, mas apenas ampliar seus horizontes. Isso sem mencionar uma infinidade de bons livros de autores que não aparecerão nos cadernos dois, jamais. Em certo evento literário de 2015, ouvi um elogio desbragado que um autor argentino (que grande parte das pessoas ainda não conhece) a um autor brasileiro já bastante consagrado, mas talvez ainda pouco conhecido. Leopoldo Brizuela falou sobre Bernardo Carvalho: "O livro de Bernardo Carvalho é o contrário da autoajuda. Ele não ajuda nada. Ele simplesmente te enfrenta." Quase não pensei em mais nada depois dessas palavras. Esse enfrentamento deveria ser obrigatório em nossa formação como leitores. Muito embora o fácil e o conhecido sejam conciliáveis, necessários, animadores, o enfrentamento com o difícil, o desconhecido ou o mais sofisticado - o artístico radical - é tão importante, tão energizante! E provavelmente tão ampliador. Os eventos literários pululam, mas não sei quanto em 2016. Ir até eles, ouvir pessoas e conhecer o que nunca se (ou)viu é parte da educação artística nossa de cada dia. Ou deveria. Lastimo dizer, mas os horizontes da escola não irão além dos currículos preestabelecidos, parados em 1945. Não dá para fazer muito sem o empreendimento, sem rasgar novos horizontes, à força de muita curiosidade e investigação. Inclusive na leitura de autores e autoras que querem ser lidos, além de conhecidos, ou mesmo a despeito de seus próprios preconceitos sobre qualidade & vendas. Ana Elisa Ribeiro |
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