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Sexta-feira, 10/6/2016
Wanda Louca Liberal
Marta Barcellos

Muitos escritores de ficção já desabafaram: está difícil competir com a realidade.

Eu, por exemplo, jamais conseguiria criar uma personagem como Wanda-louca-liberal. Aliás, numa ficção, a personagem não poderia se autodenominar Wanda-louca-liberal, para as cinco amigas que a acompanhavam no jantar. Nem a mesa do restaurante poderia estar justamente abaixo de uma plaquinha vintage com os dizeres “É um modo de amar”. O pacto de verossimilhança com o leitor, tão necessário à narrativa ficcional, estaria irremediavelmente comprometido.

Quem acreditaria em tamanha crueldade? Como aquela conversa, envolvendo mulheres de aparência tão banal, poderia estar acontecendo ali, na mesa ao lado? “Não sei, só sei que foi assim”, diria Chicó, o personagem de Ariano Suassuna que não se importava em embaralhar ficção e realidade. Eu acrescento: não sei, só sei que foi contado assim.

Isto porque, no fundo de meu ser ultimamente esmagado pela brutalidade do "real" (do golpe, do estupro coletivo, da hipocrisia humana), gostaria de acreditar que Wanda construiu uma ficção a partir de fatos não tão graves. Que sua narrativa seria apenas uma bravata (?), pois na prática ninguém consegue ser cruel e ardiloso como ela se gabava de ter sido.

Mas vamos à versão dos fatos. Ou melhor, às gravações - sempre elas. Não haverá necessidade de usarmos, aqui, algum símbolo (como ***) para substituir os palavrões. Nenhuma das seis mulheres falou um único palavrão. Aparentemente, educadíssimas. Isso apesar de gargalharem e endossarem cada detalhe sobre como Wanda-louca-liberal perseguira a atriz Letícia Sabatella e humilhara sua família, em especial a mãe de 71 anos, durante um voo internacional. O motivo? Ela ser “petista”.

***

As seis amigas estão reunidas em um restaurante do Leblon, não muito chique (a carta de vinhos é a mais viável do bairro). Falam simultaneamente, num burburinho alegre, até que Wanda consegue fisgar a atenção do grupo. “Ah, vocês não sabem o que eu fiz com a Letícia Sabatella.” A maldade orgulhosa, no tom de voz, é suficiente para calar as outras.

A atriz havia aparecido na classe executiva, a pretexto de conversar com os pais. Ousara mais, usar o banheiro da classe executiva. Foi quando, então, ousou terrivelmente: ao sair do banheiro, sentou-se em uma poltrona vaga, próxima aos pais.

“Espertinha”, comenta a amiga número 1 de Wanda, sentada à sua frente na mesa retangular. É quem tem a gargalhada mais alta.

Mas Wanda não deixou barato: “Pein! [imita campainha] Chamei a comissária e falei assim mesmo: ela pagou econômica. Não quero ela aqui. Você manda ela pra trás.”

Amiga 1, concordando: “Já que você pagou executiva...”

A comissária argumentou: “Ah, é família, sabe?”, Wanda imita, com voz melosa. Continua, como se estivesse se dirigindo à comissária: “Então, eu [inaudível] executiva. [amiga 1 dá gargalhada]. Aqui é o seguinte: pagou, anda. Não pagou, não anda!”

A comissária concordou: “Tem razão.” E Wanda: “Então pega essa senhora e manda pro lugar dela, que não é aqui. Nem no banheiro, nem na poltrona, nem no corredor. Rua!”

A amiga 2 encoraja Wanda (“Adorei”), que acrescenta: “O papa não quis falar com ela. [inaudível, risadas] Sinceramente, se fosse qualquer outra pessoa, não tô nem aí. Não vai me deixar nem mais pobre nem mais rica. Ao contrário, acho até um absurdo, na classe econômica, porque eu sempre viajei de econômica também, ter um banheiro para trocentas mil pessoas, e aquele banheiro lá na frente vazio.

Amiga 1: “O problema era ela, né?”

Wanda: “Lógico, lógico. A comissária começou a falar e ela [imitando Letícia, com voz mais melosa ainda]: ‘Aqui ninguém entende, aqui ninguém entende. Mas não quero confusão, vou lá pra trás’. Aí eu disse: ‘Vai, vai, ô Tico Santa Cruz, vai lá pra trás.’” [gargalhadas generalizadas]

Amiga 1: “Aí ela sacou, finalmente?”

Wanda: “Sacou, foi embora. Mas os pais ficaram lá. E a mãe dela, cada vez que queria passar, dizia assim: pode levantar o banco que eu quero ir ao banheiro?, pode levantar o banco que eu quero ir ao banheiro? [inaudível]. Aí, sabe quando você já está relaxada, pronta pra dormir, se desfez daquele entulho [risada]... Aí a mulher [querendo passar] e eu: Olha aqui, minha senhora, a senhora vai sentar, e ficar com esse rabo sentado até o fim da viagem. Eu não vou mais levantar, a senhora não vai mais ao banheiro, e sua filha não vai viajar aqui, estamos entendidas? Fui clara? Peguei ela no [inaudível] e enfiei [inaudível] pra ela.

A amiga 3, na ponta oposta da mesa, pela primeira vez se faz ouvir: “Será que ela pagou a passagem?”

Wanda: “Claro que não. Foi paga pela Dilma, né.”

Amiga 3: “Ou, lá na hora do embarque [inaudível] os pais eram mais velhos, de repente...”

Amiga 2: “Mas quem mandou foi a Dilma.”

No trecho seguinte, não fica claro se Wanda ainda se refere ao momento em que teria expulsado Letícia da classe executiva, ou quando todos saíam do avião.

Amiga 4: “Aí ela [inaudível]? Ficou em pânico?

Wanda: “Saiu fugida! Saiu correndo na frente. Ela queria se livrar de mim, mas eu saí batida atrás dela também.”

Amiga 1: “Deve ter pensado: ela vai fazer um escândalo no aeroporto e vão atrás de mim, igual foram atrás da Gleise [Gleise Hoffman, ex-ministra da Casa Civil].

Wanda: “Não! Eu fiz pior! Foi todo mundo esperar a mala, a família buscapé toda juntinha esperando a mala passar, aí eu peguei meu telefone. Wanda-louca-liberal!” [Começa a cantar, como se fosse a música do celular] “Chora, petista!” “E eu dançandinho. Gente, a mulher ficou desesperada. Pegou a mãe e arrastou [inaudível]. Sabe por quê? Você tem que ganhar deles na resistência, está me entendendo? Tem que fazer a vida dela ficar desagradável.

Burburinho. A conversa agora é sobre artistas, e, concluída a narrativa de Wanda, todas falam simultaneamente. É possível apenas ouvir os nomes Camila [Pitanga] e Jô Soares.

***

Espero que Letícia e sua família estejam bem. E que continuem se mantendo zen. Se precisarem, contem comigo.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 10/6/2016

 

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