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Quinta-feira, 15/9/2016 Era uma vez um inverno Elisa Andrade Buzzo O centro velho. O centro novo. De uma cidade. Em um país inteiro e dividido. Unhas pintadas de uma cor que poderia se chamar Rosa-Mosqueta, mas é Inveja Boa. Um clima melindroso, de calores e de frios. Estação metade cara, metade coroa. Passeios quaisquer. Cachecol cor da pele. E um frio que não traz angústia, antes terna sensação de sentir a atmosfera. Calidez e aconchego como no retorno à casa, no balanço de um ônibus vazio com ar-condicionado. Ladrilho português. Ventania. Vale do Anhangabaú. Corrente subterrânea por sob grades. Piso bonito da galeria Prestes Maia. Salão Almeida Júnior. Beliches enfileirados com finos colchões azuis. Terra da garoa. Anoitecer no Viaduto do Chá. Uma cobra gigantesca ronca e nunca adormece. O frio é criatura caprichosa... Os lugares fechados são mais congelantes do que o exterior. Ainda assim, há uma fuga da natureza misteriosa em direção aos shoppings, restaurantes, às repartições públicas, uma negação dos leves desígnios climáticos. E também os museus! Na exposição Playgrounds 2016, no Masp, as mães não diziam “vamos brincar?”, mas “vai brincar!” para seus filhos, tímidos diante das instalações. Perambula-se muito pelos corredores semidesertos dos shoppings, pelas lojas vazias, como sonâmbulos, numa procura mole e desejosa por roupas de frio confortáveis e estilosas, os vendedores atendem sem firulas, como representantes comerciais dos deuses recolhendo oferendas, somos correntes de ar circulando numa dança eterna de encantamentos perdidos na modernidade, zunindo sem função nem direção, os caixas nos olham como peças de uma vitrine entediante e ultrapassada. Na noite enternecida e lenta, a subida à escada em caracol da livraria por um instante nos coloca palpavelmente no mundo de hoje, não mais no passado mítico de homem subjugado pelo clima. A vida assume formas imemoriais e assim continuará, trazendo água fria do encanamento, uma lufada invernal esperançosa, ainda que a princípio desgostosa. Era uma vez um inverno diverso de todos os demais; chamando-nos para dentro de nós mesmos, e abrindo-se para outros, frescos e refrescantes. Elisa Andrade Buzzo |
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