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Terça-feira, 10/1/2017
O Natal de Charles Dickens
Celso A. Uequed Pitol

Os natais da infância de Charles Dickens não eram feitos de grandes comemorações. Filho de família de classe média baixa, conheceria a pobreza degradante das classes trabalhadoras aos doze anos, quando seus pais foram presos por dívidas. Foi então obrigado a trabalhar, e trabalhar duro, para poder sobreviver na Inglaterra dos começos da Revolução Industrial, quando leis trabalhistas, sindicatos, medidas de proteção social e outras coisas não eram sequer sonhadas pelos trabalhadores. Seus natais eram cheios de incertezas, dívidas não pagas, dinheiro faltando e perspectiva de um ano duro – os seus e os de todos os trabalhadores ingleses de sua geração.

O Natal das classes sociais mais abastadas era, é claro, muito mais luxuoso e tranquilo. Mas não necessariamente mais alegre: as regras estritas do cristianismo protestante dos séculos XVIII e XIX não via celebrações efusivas com bons olhos, e reunir a família e os amigos para comemorar ao som de música, boa comida e bebida tinha um intolerável ar pagão. Por essa razão, o duríssimo Oliver Cromwell chegou a proibir a sua celebração no século XVII. Na época de Dickens a proibição ja não vigorava, mas um escritor seu contemporâneo, Leigh Hunt, descrevia-o como um evento irrelevante, indigno de ser mencionado. Além disso, a grande burguesia britânica associava o Natal à rudeza das tradições rurais, que a racionalização do tempo da era industrial deveria passar por cima. Aos pobres, a frugalidade era imposta pelas condições econômicas; aos demais, pela rigidez dos costumes.

Quando Dickens decidiu ser escritor, já adulto, transformou as experiências de perda e desamparo em tema literário . Seus primeiros livros falam da situação degradante em que viviam os trabalhadores da Inglaterra, a indiferença para com o próximo em necessidade e o vale-tudo para subir na social, típico daquela época de intensa competição estimulada pelo governo. A Inglaterra em que ele viveu, e que retratou com maestria em seus romances, era um país de solitários, depressivos, cínicos, hipócritas, extenuados pelo trabalho e embrutecidos pelo individualismo atomizador. Era o mundo de “Oliver Twist”, de “As aventuras do sr. Pickwick” e de “Loja de antiguidades”; e era, também,o mundo de “Canção de Natal”, lançado em 1843.

Será difícil encontrar quem não conheça a história. O protagonista é o empresário Ebenezer Scrooge, que acha o Natal uma festa sem sentido e abomina as tentativas das instituições de caridade em obter donativos nesta data: “Não há mais prisões?”, pergunta ele. “Seria melhor que os pobres todos morressem. Assim, reduziriam a população excedente!”. Ao seu lado trabalha um caixeiro, Bob Cratchit, que lhe pede um dia de licença para poder celebrar o Natal com a família. Muito a contragosto, Scrooge permite – não sem resmungar, é claro, que se trata de perda de tempo. À noite, quando está sozinho, recebe a visita do espírito do seu falecido ex-sócio, Jacob Marley, que, em vida, compartilhava o mesmo ponto de vista de Scrooge. Condenado a vagar pela eternidade com uma cadeia de correntes, em punição por uma vida de egoísmo e materialismo, Marley diz ao sócio que ele receberá a visita de três espíritos de Natal, o do presente, o do passado e o do futuro, que tentarão fazê-lo mudar de vida. É o que acontece: Scrooge recebe os três espíritos e, atordoado pelas revelações que lhe fazem, passa a amar o Natal. Um homem novo nascia ali – justamente na celebração maior de um nascimento.

Canção de Natal teve nada menos do que trinta adaptações para o cinema, incontáveis versões em quadrinhos e figura na lista de qualquer biblioteca infantil que se preze. Foi traduzido para quase todas as línguas conhecidas. Sua força e influência ombreia com as parábolas bíblicas, com as quais tanto se parece. Em estudo sobre o impacto da obra, o sociólogo James Barnett aponta que “Canção de Natal” a combinava atitudes religiosas e não-religiosas de celebração de união dos homens: repudiava o egoísmo e o individualismo e exaltava as virtudes da fraternidade, compaixão e generosidade. Por isso, serve bem às diversas leituras: os socialistas viram em Dickens um companheiro de luta contra a exploração do trabalhadores pelos capitalistas, e os cristãos, um pregador contra o egoísmo e em favor da fraternidade, à maneira do “Sermão da Montanha”. Ninguém escapou ao impacto de “Canção de Natal”.

E nem mesmo os burgueses, representados tão negativamente no sr. Scrooge: uma reportagem de 1844 da “Gentleman’s Magazine”, revelou um aumento gigantesco no valor de doações para a caridade feita por milionários e atribuiu o fenômeno à imensa popularidade do romance. O feriado para o Natal foi instituído, as legislações do mundo todo incluíram o “indulto de Natal” em seus códigos e a gratificação de Natal (chamada, no Brasil, de “décimo-terceiro”) passou a ser um direito de todo trabalhador. O Natal, o dia do nascimento do Salvador da cristandade, passou a ser, também, o dia onde os Scrooges do mundo podem tentar a redenção – e nada representa melhor essa tentativa do que a peregrinação noturna do velho ranzinza e egoísta pelas ruas de uma Londres coberta pela neve, atormentado pelos pecados do passado e recebendo, na manhã de Natal, a chance de mudar de vida e redimir-se.

Por isso, e por muito mais, seguimos escutando, com atenção, à canção entoada por Dickens há 173 anos. O Natal de Dickens é, hoje, o nosso: hoje todos somos convidados a celebrar com alegria, junto dos amigos e familiares, com boa comida, boa bebida, canções e presentes. Mas o mundo de Dickens, o mundo dos Scrooges e Cratchits, dos meninos sem Natal e dos adultos que o desdenham, também é o nosso. Um mundo que precisa de redenção.

Celso A. Uequed Pitol
Canoas, 10/1/2017

 

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