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Segunda-feira, 23/1/2017 Píramo e Tisbe Ricardo de Mattos "...o que não vê o amor?" (Ovidius) 1. A lenda de Píramo e Tisbe encontra-se no Livro IV das Metamorfoses, a grande obra em verso do poeta latino Publius Ovidius Naso (43 a.C./17 d.C.). O livro de ouro da mitologia, como ficou traduzido entre nós The age of fable, de Thomas Bulfinch, traz sua versão resumida e em prosa. Nada receie o leitor, nem se acomode: o texto original, se vertido por tradutor que tenha percebido o espírito de simplicidade dos antigos poetas, é de tranquila leitura. 2. Quem foram estes personagens? Jovens babilônicos vivendo durante o reinado da lendária Semíramis, rainha da Babilônia, da Assíria e de outros reinos. Já à época da conversaçãoem que se declina a lenda dos dois amantes, os fatos são projetados num ainda mais remoto e incerto tempo-espaço. Neste ano, percebo-o agora, completam-se dois mil anos de desencarne do próprio poeta... 3. Píramo, o rapaz, era vizinho da jovem Tisbe. Ambos de beleza física equivalente. Nenhuma barreira que lhes impedisse a aproximação e o envolvimento. Convivendo na mesma localidade, atraíram-se. Juventude, beleza física, boa saúde e disposição: eis os prováveis atributos então buscados e encontrados, formando os elos iniciais da relação. Jovens divertindo-se um à vista do outro, um avaliando o desempenho do outro com maior ou menor discrição. Haveria contato físico? Inviável saber. Que tenha havido, apenas aumentaria o vínculo entre dois corpos plenos de frescor e de vitalidade, mutuamente eleitos entre tantos outros. 4. A explicação do mundo natural, dos eventos sociais e mesmo do destino do espírito facultou a Mitologia. Mitos para a criação do mundo; mitos para a elucidação das ocorrências da sociedade; mitos tentando definir a jornada do espírito. Um panteão de deuses gregos e latinos que, conforme mostra-nos Agostinho em outro monumento literário, A cidade de Deus, precisa desdobrar-se e especializar-se para manter-se. Júpiter é o onipotente, mas em caso de aumento patológico da temperatura corporal, deve ser evocada a deusa Febre. Agostinho critica a confusão mental que envolveria o pagão na busca de socorro para uma demanda. Tendo enrolado o leitor um pouco, posso voltar ao casal. Semíramis 5. Lamentável que a união entre Píramo e Tisbe estivesse fadada à irrealização. Não a queriam seus familiares. Ignora-se se havia de cada lado planos para eles, ou se tratava de rivalidade entre vizinhos. Caso William Shakespeare tenha realmente utilizado a lenda como base de sua peça Romeu e Julieta, preferiu a rivalidade. Mitos são registrados e reavivados adiante. São ímãs psíquicos que podem expor nosso conteúdo e, por sua vez, servem de estofo para outras obras. 6. Que fazia o casal pós o anoitecer, cada um recolhido em sua casa? Habitavam construções vizinhas, divididas por uma parede. Píramo e Tisbe encontraram uma fresta na parede, estreita o suficiete para ter sido ignorada, mas larga o bastante para deixar passar seus murmúrios de lado a lado. O laço entre eles aperta-se. O que é físico tende a saciar-se e afastar-se. De barriga cheia, quem assistirá programa de culinária? É até irritante... A paixão entre Píramo e Tisbe encontrou meio de alimentar seus sentimentos independentemente da presença física. Pela fresta comunicavam-se, trocavam recados e juras. E se não pudessem sair de casa por causa da chuva ou do frio, ou se alguém precisasse acompanhar os familiares em visitas ou trabalhos? A fresta estaria ali, constantemente conferida pelo que ficasse. 7. Lembremos que os familiares vetaram a união. Li algures que não se interfere entre o ser e seu destino, não se intromete com o indivíduo no cumprimento do sentido de sua existência. Havia mais que atração física e paixão entre eles. O Amor fez-se notado. O Amor, entidade resultante do encontro de duas individualidades, do encontro de duas singularidades, como que percebeu o terreno propício e plantou-lhes a ideia da fuga. E escolheram fugir: definiram horário e ponto de encontro. 8. Tisbe chegou primeiro. Trazia até um véu, atributo de toda noiva e aceno para a seriedade de sua atitude. Esperou por Píramo, conforme combinado, sob amoreira branca próxima a um lago. Conhecessem melhor a vida selvagem, saberiam que esta é mais ativa justamente à noite, quando a temperatura é mais amena, as presas mais lerdas e os predadores mais ativos. É uma leoa que veio ao lago beber, com a boca vermelha do sangue de sua recente refeição. Tisbe recolheu-se a uma gruta para esperar o animal afastar-se. Não percebeu a queda de seu véu. A leoa retirou-se, não sem prévia destruição do véu encontrado em seu caminho. Tisbe, por William Waterhouse 9. Deveras, melhor deizar que cada um realize o sentido de sua existência. Que mostre quem é por meio do que faz. Na lenda de Píramo e Tisbe, a leoa ficou com o papel das intercorrências a vida, aqueles imprevistos que surgem e poluem a questão principal. Deixassem o casal em paz e não se decidiriam pela fuga. Se não acordes em fugir e não iniciado o plano, não estariam no caminho da leoa. Certas ocorrências podem ser contornáveis para uns e fatais para outros. 10. Contornável para Tisbe: viu o animal e afastou-se. Fatal para Píramo, que chegou ao local e encontrou pegadas e um véu roto e ensanguentado. "Acabou-se", pensou ele em desespero, tirando um punhal da cita e ferindo-se. Ovidius foi mais sanguinolento e comparou o sangue saído da ferida de Píramo à água que sai ruidosa de um cano de chumbo partido. O sangue, de qualquer forma, saiu com força suficiente para tingir nos galhos as amoras até então brancas. E também pentrou a terra, sendo absorvido pelas raízes da planta e originando nova variedade. 11. Triste desfecho para nosso casal. Tisbe saiu da gruta e não reconheceu a amoreira de frutos tintos. Correu ao corpo de seu amado e recebeu dele o último olhar. Suicidou-se pretendendo encontrá-lo no outro mundo. As famílias cremaram os corpos e reuniram as cinzas em túmulo único. Grande consolo. 12. Entretanto, caro leitor, permita-me considerar que na lenda de Píramo e Tisbe, pretendi identificar a atração física entre os jovens; identificar um entrosamento de afeições - poeticamente representado na conversa pela fresta - que permitisse falar em paixão ou, melhor ainda, em união psíquica entre eles; enfim, tudo coroar com a identificação do encontro espiritual que consagrou o Amor entre eles e possibilitou uma decisão, uma atitude perante o mundo. Ainda que mal sucedida, tomá-la reforçou seu valor. Permita-me, caro leitor, acreditar ter exposto neste exercício, recorrendo a personagens mitológicas, algo da teoria tridimensional do Amor elaborada por Viktor Frankl. Não creia, contudo que este humílimo seguidor esgotou o assunto. Ricardo de Mattos |
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