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Quinta-feira, 11/5/2017
Correio
Elisa Andrade Buzzo

Não porque a noite anterior foi de tempestade que se evidencia esse conjunto de paisagens ser afeito à devastação. É algo inerente à sucessiva tarefa humana da ocupação do espaço. São algumas das artérias de acesso ao coração da cidade. Em pinceladas nervosas nas seis pistas de grandes avenidas centrais são bombeados pessoas, carros, motos e ônibus. Dentre estes, surge em letras garrafais e espaçadas o destino: Correio; e um passageiro observa pela janela como um glóbulo ingênuo.

Por mais uma vez, tudo pode ser daqui varrido, levado num vento mais forte; exceto as colunas e as entradas monumentais dos velhos edifícios. Mas esse território não é mais virgem e sempre guardará ruínas das ocupações que nem em sonho se imaginariam relegadas. E a reconstrução utópica das avenidas São João, Duque de Caxias e Rio Branco se dará pelos pórticos sobreviventes de épocas áureas.

Estas duas últimas avenidas ainda parecem esquecidas em meio a uma “revitalização” do centro. Aqui a sobrevivência se alimenta dos escombros, e estes se degradam mais como o alimento dos sobreviventes. Roupas estendidas na janela da sala. Pinturas malfeitas. Persianas em estado avançado de deterioração. Lençóis estampados fazendo as vezes de cortinado. Marquises se esfacelando. Ausência de comércio aos moradores. Grandes edifícios residenciais. Vida real, sem parafernálias milimetradas. E o CORREIO passa dando de ombros.

Prédios com nomes imponentes de cidadãos desconhecidos. Calixto Espiridião. Cornélia Toledo. Gente morta e esquecida. Mesmo porque ninguém presta atenção nesses letreiros pendentes pelo peso do tempo e do desprezo. Outlet Heliomoto. Rei dos Racks. Curinga Som. Skina das Motos. Dois manequins com capacete e roupa de motoqueiro pendentes como enforcados num prédio. Oficinas mecânicas preenchem os espaços, carentes de pedestres.

É mesmo num repente que a visão se abre numa praça quase sem plantas. Uma gigantesca estátua equestre surge reluzente no alto da praça. A espada do Duque de Caxias espeta a atmosfera úmida e macia do outono. E, na última aresta da praça Princesa Isabel, os dizeres “Crack, é possível vencer” na base comunitária é uma terrível recordação de batalhas íntimas.

Há um silêncio quando a avenida Duque de Caixas cruza com a Rio Branco. Um amplo horizonte se anuncia. A esmaecida torre da Júlio Prestes com a bandeira do Estado de São Paulo é um prenúncio ao contrário de glórias passadas. Agora é ZIT centro, rua dos Gusmões, um mural dos Trapalhões. Cruzamos a Ipiranga: tudo acontece. E descemos pela abertura amarelecida do Paissandu.

Não por aqui ter havido noturna e violenta chuva, mas nessas imediações ruína circunda. O ônibus aporta na inexistente praça do Correio, no terminal logo abaixo do viaduto Santa Ifigênia, aos pés do Mirante do Vale. Mais pequenos ainda se sentem os glóbulos nesse desembarque em que se cruzam construções grandiosas. E, no caminho para a entrada da agência central dos Correios, na praça Pedro Lessa, uma árvore caída é retirada em rodelas. Diana Caçadora caminha, sem o braço esquerdo, nua e desacompanhada, na calmaria inabalável.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 11/5/2017

 

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