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Terça-feira, 24/7/2018 De quantos modos um menino queima? Duanne Ribeiro Você diz: é o mesmo sol no mesmo céu, as mesmas estrelas na mesma noite, o mesmo planeta no mesmo espaço sideral, os mesmos tempos nos mesmos dias, a mesma casa, o mesmo quarto, o mesmo sangue, o mesmo ardor, o mesmo gosto, o mesmo você. O devir patina, se irrealiza. Não é o que você diz? Então diga. Diga que é o mesmo sol no mesmo céu, as mesmas estrelas na mesma noite, o mesmo planeta no mesmo espaço, os mesmos tempos se alternando nos mesmos dias, a mesma casa, o mesmo quarto, o mesmo sangue, o mesmo ardor, o mesmo gosto – diga que é sempre o mesmo você, e que sempre será. *** “Labyrinth”, do Cure, é uma música que se move. Primeiro, do cosmos ao close-up: vem dos giros e brilhos dos astros ao comum na Terra; chega a uma casa, a um quarto; adentra uma subjetividade (diga que é o mesmo menino a arder na mesma cama!):say it's the same sunE, segundo, move-se desses exemplos abstratos e dessa descrição em terceira pessoa a uma fala direta, o imperativo gradua – o que se evidencia pelas ênfases na voz e nos instrumentos – de uma demanda a um desafio: say it's the same youMe parece cada vez mais um “você disse, terá coragem de repetir?”. *** Esse alguém a quem o poeta se dirige – em certo sentido, poderíamos dizer que se trata dele mesmo. Pois o Cure é a mesma banda de “Killing an Arab”, música inspirada no livro O Estrangeiro, do filósofo e escritor Albert Camus, em que ouvimos:whichever I choseComo no romance de Camus, sem poder encontrar uma base transcendente que valore e guie a existência, o eu lírico é tomado de niilismo. Aqui, o mesmo é inescapável, assim como àquele a quem o eu lírico de “Labyrinth” fala. Desse modo, podemos refrasear a questão: “Eu disse isso! Terei coragem de repetir?”. *** yeah, tell me it's all the sameSe é tudo de fato o mesmo, então o sol é frio e as estrelas são pretas (repare: a luz que nos chega, ela elude a sua dinâmica, faz esquecer que queima continuamente para ser). Então não há movimento – e tempo e espaço, dia e noite perdem sentido. Chegamos ao “absolutamente nada” de “Killing the Arab”, mas dessa vez isso não alcança o status de conclusão. but the sun is cold: the sky is wrongNo interior do mundo feito nada um menino arde (queima) estático (continuamente): the house is dark: the room is scarredIndependente de como se classifiquem as experiências, percebe-se o quarto escuro, as histórias que ferem esse espaço, a rigidez do corpo, a dureza do colchão, a viscosidade do sangue, o peso na cabeça, a língua seca, o beijo que não satisfaz. Essas vivências são agora. Podem ter ocorrido fatos semelhantes antes; esses, agora, aparecem com a sua singularidade irredutível. É o mesmo menino na mesma cama? Não, and it's not the same you *** O terceiro caminho pelo qual “Labyrinth” se move é, assim, esse da argumentação: leva das proposições iniciais a esse veredicto final, através de uma redução ao absurdo. Uma intensidade ainda maior toma a música, pela reincidência dos versos e pela emoção que a voz passa a transmitir, além do instrumental, mais carregado:it's not the same youO mais significativo: todas essas transições ocorrem com mudanças pequenas em uma letra cuja forma é constante. A figura de linguagem das primeiras estrofes é a anáfora – essa repetição nos inícios. Da afirmação à negação passamos simplesmente do “it’s the same you” para o “it’s not the same you”. Na espessura narrativa coloca-se apesar da insistência, por muito pouco, a novidade. E nas trocas simples de palavras — "say" por "tell me", "diga" por "me diz" — modulações qualitativas cirúrgicas, ressoantes. E em relação à filosofia do absurdo que justificava “Killing an Arab”, é como se ela fosse derrotada no seu próprio jogo: é levando ao absurdo, à impossibilidade lógica, que essa ideia que todas as escolhas dão no mesmo (embora, se formos discutir o que se diz em O Estrangeiro, leremos lá não que as escolhas são idênticas, mas que “todas são ruins”). Sobretudo, a transformação do ponto de vista de uma canção à outra prova o vir-a-ser no próprio poeta. oh it's not the sameO mundo não pode seguir o mesmo, senão por seus processos próprios, porque eu não posso recebê-lo igualmente. O dilema é similar ao do verso dos Smiths: “Has the world changed or have I changed?”. De todo modo, nada segue estável. O devir se realiza. Não é o mesmo sol no mesmo céu. Não são as mesmas estrelas na mesma noite. Não é o mesmo planeta no mesmo espaço sideral. Nem os mesmos tempos nos mesmos dias. Jamais a mesma casa, o mesmo quarto, o mesmo sangue. O gosto dos beijos variará ao sabor dos acasos. De quantas formas esse menino ainda pode queimar? Duanne Ribeiro |
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