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Quarta-feira, 10/10/2018 As pedras de Estevão Azevedo Wellington Machado Quem estava a par do que acontecia no Brasil nos anos 1980, mais especificamente na cidade de Curionópolis (PA), pôde acompanhar uma corrida da população para explorar ouro na região. Foram retiradas mais de 30 toneladas do metal, no maior garimpo a céu aberto do mundo. O lugar ficou conhecido como Serra Pelada, uma região desprovida de estrutura, que recebeu mais de 80 mil garimpeiros, anunciando a precaridade da condição humana. Cada garimpeiro buscava na escavação e apuração, no “trabalho fácil”, o sonho de enriquecer para toda a vida. Dali surgiram vilas, lugarejos e palafitas, que abrigavam, com um certo grau de amontoamento, os trabalhadores aventureiros – muitos deles com suas famílias. O movimento e o cotidiano do garimpo foi registrado por Sebastião Salgado. Um recorte do que poderia acontecer nesses possíveis lugarejos foi imaginado por Estevão Azevedo em Tempo de espalhar pedras (no caso, diamantes), romance relançado pela Record em 2018 - a primeira edição saiu em 2014 pela Cosac Naify, editora extinta na mesma semana do lançamento; o livro venceu o prêmio São Paulo de Literatura de 2015. O cenário do livro é um distrito pequeno, onde as pessoas, quando não estão no garimpo, estão bebendo na praça, num “não-fazer” eterno, sob o sol escaldante. Uma praça onde os dias se vão sem maiores novidades: Alguns garimpeiros sem trabalho vagavam de um lado para o outro, movidos pelo tédio e falta de perspectiva. Outros contavam histórias e riam da própria miséria trocavam sopapos amistosos e provocações cordiais que algumas vezes descambavam para a contenda, assobiavam para a rara moças sem doo que por ali passavam, bebiam poucas moedas de que dispunham. Homens embrutecidos pela faina desde sempre, e pela falta dela desde que as pedras haviam rareado. *** A relação entre Rodrigo e Ximena, mais carnal e sexual do que de afeição, permeia toda a narrativa, que tem parentesco com a forma de narrar de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral e Saramago. O leitor vai encontrar no livro toda uma gama de trejeitos nordestinos, lendas, brigas e vingança, que delineiam a imagem do sertão “cabra-macho”, que normalmente nos chega caricaturada pelas séries televisivas. Os pais de Rodrigo e Ximena são inimigos mortais – há um jogo interminável de vingança entre as famílias. Diogo (pai de Rodrigo) carrega uma aversão quase que espiritual a Gomes (pai de Ximena). Paralelos ao fio narrativo dessas famílias, há personagens bem elaborados, simbolizando a violência, a malandragem ou a loucura. Aureliano, por exemplo, é um coronel autêntico, com autoridade informal, rodeado de capangas a protegê-lo ou para “fazer justiça”. É o comprador oficial de diamantes. Cuida do “câmbio”, do pagamento das pedras, e da inevitável exploração dos garimpeiros. Silvério é um religioso místico. De tanta fome vai à loucura e começa a ter alucinações. Num dado momento, arrebanha seguidores para uma procissão, tornando-se uma espécie de Antônio Conselheiro da cidade. Bezerra quase não garimpa, mas está sempre com dinheiro para as cachaças. Por sorte, ele descobriu uma passagem secreta que o leva a uma espécie de tesouro particular de diamantes. Quando o dinheiro escasseia, ele entra na mata para tirar uma pedra, garantindo-lhe o sustendo por mais uns dias. Joca, irmão de Rodrigo, é perseguido numa das cenas mais angustiantes do romance, quando é cercado numa tocaia à Lampião. A construção desses personagens tem o mesmo peso dos personagens principais no livro de Estevão. Como toda riqueza é esgotável, os diamantes começam a rarear. A fome e a miséria definham a vida do lugarejo. Muitos vão à loucura, cavam o quintal das residências em busca de diamantes. No ápice da loucura, perfuram a parte interna das próprias casas. Pessoas mendigam comida, o chão duro e seco não brota planta, mais parece Vidas secas, de Graciliano Ramos. Silvério chega a se humilhar ao pedir comida a Diogo: Vim para saber se, com todo o respeito e por Deus, o senhor não teria mandioca ou pão ou outro de comer para me vender, a pagamento futuro e garantido, o senhor sabe, acabou-se o que eu tinha, plantação não vingou, foi praga, pois foi, só pode ter sido […] Silvério estava louco. É a fome, disseram alguns, pois não planta, não cria animais, nem mesmo esmola, o infeliz. Se reza enchesse bucho, o padre não cobrava o quinto... *** O leitor mais atento identificará em Tempo de espalhar pedras algumas formas de narrar de alguns escritores brasileiros. Há ecos de Guimarães Rosa em expressões como: (...)mastigou o oco da boca; (...)fazer Vitória rezar pra dentro umas imundícias; (...)espairecer, palavra de garimpeiro? Nem não; (...)muito no passado, arriscara consulta a proclamados doutores, quando os havia, e eles tentavam pomada, emplastro, chá, mas, para dor que não existe, o adequado é remédio que não se encontra ou colherada de ar. E há trechos que lembram Saramago, pela cerzidura das frases picadas na construção de um cenário, situação, estado de espírito ou psicológico: (...) Em uma única vez, no entanto, e justo naquela, eis a sorte dentro do azar, foi acontecer o improvável: um desacordo entre gatilho, martelo e agulha, talvez pela fadiga dos frequentes e bem prestados serviços, fez a bala, ao contrário das predecessoras, que daquele útero mecânico foram todas expelidas em explosivo nascimento e, uma vez dadas à luz, desconfortáveis no contato com o ar, como se desistissem, em uma espécie de desparto, pode-se dizer, logo encontraram novo corpo em que se aninhar, o desacordo mecânico fez essa bala, a dessa única e precisa vez, não entendendo que deveria deixar o cano e desnascer em outras carnes, incendiar-se ali mesmo, dentro da arma, não vingar e explodir. *** Cachaça, assassinatos, facadas… O estereótipo do sertanejo cabra-maracado-pra-morrrer dão o tom de humor em Tempo de Espalhar pedras. As situações dramáticas têm sempre um chiste narrativo intercalado. Há expressões características da idiossincrasia nordestina, que se aproximam do anedotário de Ariano Suassuna do Auto da Compadecida. Azevedo é hábil na criação de frases de efeito (não raro elas são epígrafes dos capítulos): Quem rasga um ventre não tem medo de intestino. Quem tem sobrenome não aperta o gatilho Devaneava. Mulher era lá opção? Tivesse dois braços lisos ao seu lado naquele escondido em que descobrira o garimpo, dava-lhe enxada? Dava-lhe beijos... Rosário não decidiu sujar a lâmina, afiada e lavada havia pouco na água corrente (…) e por isso elegeu um tiro como forma de liquidar o assunto Dissesse o homem meia palavra ao coronel, estava Bezerra pobre e, pior, morto, que é um modo de estar pobre, só que de vida. (…) Rodrigo via quando queria aqueles pedaços de pele de Simena que o sol não costumava iluminar (…) manteve no coldre o parabélum e serviu-se do facão para extrair das tripas do ladrão o sopro que animava suas furiosas imprecações... Vingança iminente fede mais que cadáver, daí a vila desgostar que ela tarde; Em alguns trechos, Estevão Azevedo cria também metáforas bem humoradas: Roubo? O coronel mandava cortar o dedo como castigo; a mão se fosse necessário [...]diziam tudo isso mas até hoje não tinham visto ninguém que cumprimentasse incompleto ou desse meio aceno de longe; ou valendo-se de jogos de palavras: os diamantes ou não existiam mais ou haviam aprendido a se disfarçar de granito; matar era do costume, judiar não, isso era modo de quem tinha índole perversa, de quem não valia a arma que empunhava... *** À primeira vista poderíamos cogitar que Estevão Azevedo tivesse realizado inúmeras pesquisas de campo, visitado cidades do interior nordestino tomando notas etc. para escrever o livro. Mas não. O autor valeu-se apenas de pesquisa bibliográfica para compor sua história. De uma frase do Eclesiastes tirou o nome do livro; do Cascalho (Herberto Sales) tirou informações sobre o garimpo; do livro Fome (Knut Hamsun) captou os delírios de fome dos personagens; e do Abril Despedaçado (Ismail Kadaré) pesquisou sobre vingança. Há de se destacar a honestidade intelectual do autor ao citar todos os livros e todo o percurso da criação do romance. O maior mérito foi ter criado um história densa, com personagens carregados de exotismo. O livro tem capítulos bem delineados, que evidenciam ao leitor toda a estrutura esboçada por Estevão na construção do romance. Em tempos de predominância da autoficção há de se ressaltar a capacidade imaginativa do autor, com extremo domínio narrativo. Estevão Azevedo arrancou pedras do chão para construir uma história carregada de verossimilhança em Tempo de espalhar pedras. Wellington Machado |
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