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Terça-feira, 5/3/2019
O Carnaval que passava embaixo da minha janela
Elisa Andrade Buzzo

Embaixo da janela do meu apartamento passavam os foliões para o carnaval. E eram coloridos em seu desengonço, com glitter, algum confete esparso, chapéus e shortinhos, cada um deles aumentando o compacto bloquinho que terminava seu cortejo na saída do Elevado na Barra Funda, pulsando de penugens e concentrados na voz estridente e metalizada de uma cantora de marchas inaudíveis. E eu ouvia no “Elis Especial”, Ruy Guerra e Carlos Lyra: “Vem, oh, fantasia/ Arrasta a saia, rasga o dia/ Meu passo é compasso na avenida/ Teu riso que dança, trança, triste e sofrido (...) E eu abro alas, jogo lanças/ Serpentinas de cores feridas/ E rompo estandartes na avenida em dor/ Sem céu, sem luz, sem sol, sem cor”.

Era meu camarote com visão parcial da folia, de onde eu podia jogar distante uma serpentina e para mim enlaçar estranha estampa de carnaval desfilando pela avenida. Mas aquilo me parecia de uma lonjura infinda – longe o bloquinho dispersando-se, longe as figurinhas de carnaval de bruxas e fadas de tutu, piratas, he-mans e odaliscas, longe o baile de carnaval na escola primária, com máscaras aterrorizantes e coloridas espalhadas, uma música saída da bocarra fresca de antigos sambas, e uma chuva de papel arredondado a bordejar o espaço intermitente da infância carnavalizada. No dia seguinte, formávamos fila nas arcadas douradas do liceu, e com terno divertimento o padre colocava cinzas em nossas testas de crianças deixando de ser anjinhos.

Nunca minha fantasia no corpo foi colocada, nem deposta; é permanente de meu figurino italiano a estampa preto e branco do macacão de colarinho largo e bufante e uma linha descendente ou ascendente de pompons, até os sapatos, resistente à passagem dos entrudos. A touca preta é do meu dia a dia o penteado contido e ligeiro. Todos os dias são terças-feiras gordas cheias de exageros morais e excessos sentimentais, sucedidos por quartas-feiras de cinza em ressaca, meditativas, quando o pierrot senta e cruza os braços em seu escuro calabouço, e um facho de luz se embrenha em seu corpo de lunático – como no óleo de Carl Spitzweg. Ou então, quando a "Pierrete" de Di Cavalcanti adentra o espaço claro de avarandado e cortinado, invadida por pombas brancas.

Aqui os palhacinhos não se encontram nos blocos, desfilam solitariamente pelas ruas quase-desertas. A vida é um seguido enfrentamento, uma possibilidade parca de carinho, uma necessidade de dignidade. Nela, um rosto, pintado de muito branco, é alvo certo do esbofeteio. Às vezes, uma lágrima negra permanece, como tatuagem, noutras vezes um sorriso gruda no rosto como praga, indecisos se isso de brasil é coisa de gente feliz ou de gente assim mais para o triste, se isso de estar longe é algo tão desnecessário quanto imprudente. “Mas vem ou tudo ou nada/ Meu entrudo, minha espera/ Meus campos de guerra, vem, amada/ De tanto que eu chamo, canto, peço e preciso”.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 5/3/2019

 

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