|
Terça-feira, 12/3/2002 Pouca gente sabe Rafael Lima Da lama aos quadros Pouca gente sabe, mas as histórias em quadrinhos foram de grande importância na formação do movimento mangue bit. Isso mesmo: as histórias em quadrinhos. Uma das primeira bandas em que Chico Science participou chamava-se Loustal, em homenagem à Jacques de Loustal. Conta a lenda que este desenhista francês se congratulou pessoalmente com os músicos, que davam um show na concha acústica externa ao antigo prédio dos Correios, na sede da 2a Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, em 1993. Foi um dos primeiros shows de Chico Science e Nação Zumbi fora de Pernambuco. O DJ Dolores, hoje capitaneando a Orquestra Santa Massa, viveu um bom período exclusivamente de quadrinhos, em pleno Recife, graças à revigorada que o Plano Cruzado deu ao mercado na segunda metade da década de 80, ainda sob identidade secreta de Helder. As bastas e triangulares costeletas que Chico Science ostentou durante certo período eram uma homenagem ao visual de Corto Maltese, o aventureiro dos sete mares criado por Hugo Pratt. Agora, por que Helder passou a se chamar Dolores quando partiu para carreira solo, essa não tem nada a ver com quadrinhos - e vocês nem queiram saber... Olhe onde você senta Flanando pelas vielas da informação, fui parar num daqueles becos bem típicos da aldeia global: uma página da internet sobre designers escandinavos. Só para aprender a pronunciar os nomes, eu precisaria de um curso intensivo - afinal, em norueguês, as palavras tem 4 consoantes para cada vogal, que em geral está de cabeça para baixo - e tem acento. Já para apreciar as formas inusitadas que aqueles vikings emprestaram a banalidades do cotidiano, não é preciso ter aula. É formidável, por exemplo, descobrir o nome do criador das manjadíssimas mesa e cadeira-tulipas, presença garantida de dez em cada dez piscinas e clubes - e descobrir que estão quase completando 50 anos(!). A modernidade clássica das formas me fez lembrar de uma cadeira que existe na casa da minha avó, desde sempre apreciada para roncos pós-almoço, sobretudo quando falamos de um apimentado bobó. Não é preciso explicar para ninguém como se senta em uma cadeira, mas aquela é a única que vi até hoje em que você não senta: se aninha em seu interior ovalado, os pezinhos para fora, sobrando felizes como pernas de criança num balanço de praça. Nunca tinha visto outra com seu formato em lugar nenhum, até me deparar os projetos dos designers escandinavos. Senti que estava quente. Pergunta daqui, pergunta dali, enviei um croqui rápido a um arquiteto que acertou na mosca: era a Bardi's bowl, de Lina Bo Bardi. Agora já posso fazer bonito no próximo almoço de família. Internet serve para essas coisas. Elucubrações sobre a diferença entre real e virtual Todo texto de e-mail, assim como o de chat - ou os posts em um blog - é dirigido, objetivo e editado, mostrando apenas que o autor quer. Então, apesar do lugar comum em dizer que na internet não há censura, ela existe, sim, em pelo menos uma forma: a auto-censura. Aquilo que você não quer dizer. É impossível fazer uma imagem completa de alguém apenas conhecendo-o (ou conhecendo-a) pelas diversas manifestações multimídia da rede. Seria como bradar ter conhecido um pintor do século passado, sei lá, Toulouse-Lautrec, apenas por ter visitado detidamente o museu no qual sua casa, em Albi, foi convertida. Ao vivo, téte-a-téte, embora quase nunca se obtenha uma manifestação pessoal tão consistente como o croqui de um quadro ou os originais de um livro, fica muito mais fácil formar a imagem por si, como um todo. Despidos os véus do preconceito e quebrados os filtros de percepção, fica simples conceber a identidade, além de tudo o que a postura e a linguagem física denunciam. Aventureiros e estilistas Quarta-feira passada, divagava sobre os problemas do jornalismo com duas pessoas desta área. Um bacharel em Direito procurava alternativas para a minguada oferta cultural na província onde morava. O outro jornalista nunca chegou a tirar seu registro porque alguém em algum órgão tinha-o obrigado a literalmente tirar outra carteira de identidade, por conta da falta de uma preposição entre seus dois sobrenomes, num dos documentos. Nunca entendi bem por que o jornalismo sempre foi uma carreira muito disputada, apesar de não ser difícil enumerar motivos para atiçar a imaginação. A atração que inúmeros escritores causaram nas futuras "estagiárias de calcanhar sujo" ao transferir para inúmeras crônicas, relatos de redação de jornal, conferindo uma aura única àquele lugar mágico cheio de barulhentas máquinas Remington e habitado por contínuos de colarinho ensebado. Nélson Rodrigues, Armando Nogueira, José Carlos Oliveira, todos eles transportaram para o papel suas vivências no meio jornalístico, transformando em mitos colegas de redação, almoços de domingo e trivialidades da vida nas ruas - o exemplo mais famoso é o do caseur Otto Lara Resende, que até nome de peça virou. O fascínio de ver escritores como Rubem Braga ou Luís Fernando Veríssimo (pelo menos, até ir para O Globo) nunca se renderem à burocracia da repetição apesar da produção diária, ou quase. O lado mais aventureiro da reportagem, fosse nas odisséias de Tom Wolfe no ônibus dos Merry Pranksters pelo new journalism, fosse nas gonzo trips de Hunter S. Thompson. Particularmente marcante como ícone do jornalismo investigativo é certa cena de Todos os Homens do Presidente, em que Dustin Hoffman finalmente consegue entrevistar uma fonte quente, que poderia fechar vários circuitos do caso Watergate, mas exige que o depoimento seja sem gravador ou bloco de notas. O repórter levanta para ir periodicamente ao banheiro, ao longo da entrevista, e na cena seguinte, descobre-se por que: papel higiênico, lenços descartáveis, maço de cigarro, papel de bala, qualquer superfície útil fora usada para anotar as declarações da tal fonte... Bernstein e Woodward hoje devem passar a maior parte de seu tempo em palestras; o espaço e a liberdade de aventureiros & estilistas nas redações é reduzido, onde revisoras que não conhecem a expressão vento em popa adicionam um L, colocando uma inesperada fruta onde o vento batia, e copidesques que proíbem o uso das conjunções adversativas todavia, contudo e entretanto, já que poderiam soar pedantes aos ouvidos acostumados apenas com mas e porém, fecham o cerco a recriações que outrora reinventavam a língua. Diante de entraves assim, a exigência do diploma obrigatório acaba soando apenas como um problema a mais. A saída para quem quer saber é lembrar que a imprensa não nasceu com a invenção dos jornais, e voltar a buscar as informações na fonte, sem esses intermediários que se tornaram um quarto poder no último século. A saída para quem quer ler é buscar outros meios, onde regulamentação e manuais de redação não tenham ultrapassado suas premissas originais, se convertendo em camisas de força. Argumento definitivo Para acabar de uma vez por todas com essa discussão acerca de elfos, anões e trolls: se J.R.R. Tolkien tivesse escrito um excepcional livro sobre uma tribo de hábitos específicos, com dialeto próprio e vestimentas peculiares, habitando em local indefinido (fictício, quem sabe?), no qual utilizasse todo seu conhecimento lingüístico na criação de verbos e substantivos em uma gíria tão bacana, mas tão bem sacada, que soaria como se realmente tivessem existido (ao invés do hermetismo que só serve de passatempo para nerds & acadêmicos), ele se chamaria Anthony Burgess e seu livro, A Laranja Mecânica - e não O Senhor dos Anéis. Rafael Lima |
|
|