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Sexta-feira, 17/1/2020
Ler, investir, gestar
Ana Elisa Ribeiro

Quando alguém lhe pergunta se você lê, pode ser que primeiramente venha o impulso de dizer que não. Pode ser que, com uma certeza meio orgulhosa, você diga que sim, mas todos os resultados de pesquisas massivas no Brasil acusam nosso povo - nós mesmos - de pouca leitura, insuficiente, lacunar, fragmentária, equivocada; que somos leitores de poucos livros ao ano; que esses livros não são os bons livros, dos bons autores; que os livros didáticos são computados, sugerindo que, então, estamos bem abaixo do que parece; que a Bíblia também entra na conta, então... e por aí vai. Não lemos. E não lemos como os outros, alguns outros que, na média, consideramos, ou alguém considera, nossos exemplos; ou que deveriam ser nossos exemplos de leitores e leitoras, seja aqui pela vizinhança, seja em outro continente.

Se seu impulso foi dizer que sim, que você lê, e que lê bastante, parece que você é uma exceção à nossa infeliz regra. E aí pode ser que simplesmente virem as costas, deixando um rastro de vagueza no ar; mas pode ser que evoluam à etapa qualitativa da pesquisa e passem a querer saber o que você lê, com que interesse, quantas vezes, com que intensidade, com que competência e assim vai. E você dirá, se for sabido ou sabida, que lê Machado de Assis de segunda a quarta, que troca para Clarice (assim, sem sobrenome, com intimidade) de quinta a sábado e que no domingo se dá o direito de ler poesia, que considera mais leve e acessível. Pode ser que você até cite mais nomes, alguns sobrenomes, maioria masculinos, e que até se lembre de algumas capas e editoras dos livros consumidos - muita sofisticação.

Bem, não sendo você a regra, segundo qualquer pesquisa, miremos então aqueles que dirão que não, que não leem. Talvez digam com um pouco de vergonha, vez que sabem que isso é de pouco prestígio. Pode ser que tentem se salvar, dizendo que não leem por falta de tempo, a vida corrida, a carne cara, os filhos pequenos, os pais doentes, o trânsito empacado diariamente, etc. Pode ser que digam não por outro motivo: ler decerto que é ler Machado e Clarice, e estas coisas pouco refinadas e prestigiosas que ocupam meus olhos e minha mente, bem, não são leitura.

Grande parte dos/das leitores/as se sente nesse lugar de não-leitor/a justamente porque lhes assombra um cânone que, ao mesmo passo, não lhes agrada; e por isso já vão logo se retirando da conta dos leitores e leitoras, sem nem reivindicar nada. É o que fazem porque ler outras coisas não é ler, segundo aprendemos pescado no ar, no ar das relações sociais, escolares, midiáticas e sabe lá mais onde. E assim ficamos entre umas leituras e outras, umas perto, outras distantes e invisíveis.

Supondo que possamos considerar leitura qualquer leitura, poderíamos então, além de considerar a Bíblia e os livros didáticos, levar em conta qualquer outra coisa, desde que fosse efetivamente lida. Mas isso não trará o valor para nosso lado, é claro.

Fato é que ler é exigente e lento. E não preciso falar em literatura canônica para chegar aí. O tempo passa no trânsito, na roupa suja, no transporte público, na educação das crianças, na doença dos velhos, no cuidado dos bebês e passa também ao se ler.

Ler e o tempo

Lembro de quando ouvi, pela primeira vez, falarem em leitura dinâmica. Era uma estratégia consciente, que vendiam em cursos caros, para ler em velocidade, muito mais rapidamente do que o normal, com a apreensão do conteúdo! É claro que nunca tentei. E é claro que há quem tenha aprendido e dê depoimentos positivos sobre a técnica. No entanto, nunca me interessei por ler mais rapidamente, saltando na diagonal por cima dos conteúdos.

Lido, em minha vida profissional, com pessoas que estudam. Estão matriculadas em cursos que vão do ensino médio à pós-graduação stricto sensu. Em todos os casos, essas pessoas precisam aprender sobre muitas coisas e participar, tão ativamente quanto possível, de debates, textos, enunciações. Nem sempre o fazem, nem sempre bem, quando fazem, mas é esperado que façam. E sempre que inicio um curso qualquer, em qualquer etapa, começo falando sobre leitura. E sempre digo que ler leva/gasta tempo. Ler é uma parte do cronograma que precisa ser considerada. Proporcionalmente, é um bocado bom do tempo de uma pesquisa, por exemplo. E nem sempre minha fala-apelo faz sentido.

Comumente, misturo o tema do tempo ao tema da leitura. Andam juntos, quase nunca de mãos dadas. Para ler seis livros inteiros, de uma teoria que ainda desconheço, com postura de quem estuda (inclui voltar e grifar, por exemplo), levo aí bem uns meses. Nunca medi, mas sei que gasto boa parte de um calendário só imergindo nas páginas, me apropriando do que elas dizem, dialogando com elas, me afetando por elas, até que eu possa sobre elas dizer algo. E algo de meu, sem muito tropeço. Isso me leva/consome/exige tempo.

Esse tempo pode ser pensado como investimento, mas não sei quanta gente pensa e sente assim. Nem vou retomar o assunto. Penso mesmo na simples ideia de que a leitura exige horas de imersão, de dedicação, de disposição. Inclusive de uma disposição descansada, já que não é possível ler com sono, com fome, distraída, desatenta, nervosa. Ler exige mais que tempo, exige o corpo e a alma do/a leitor/a. E talvez por isso seja pedir demais que as pessoas invistam em leitura.

Acontece a esses e essas que leem nada ou pouco um milagre. É que se vão, depois, enunciar, propor, escrever, defender... o farão sem investimento. O texto, que até produzem, virá sem calço, sem todos os parafusos, sem cola, sem rejunte, sem pega. Pode ser que boas estratégias de cópia, de encenação, de verossimilhança façam que esses textos parem de pé, mas ocos, bem ocos. Para escrever (uma tese, um artigo) é preciso ter lido; e para ler é preciso ter investido tempo na leitura. A equação parece óbvia, mas não é.

Ler a teoria, ler a obra, ler livros inteiros, deixando rastros de leitor/a; ler trabalhos anteriormente feitos e que se debruçaram sobre o tema; ler outras teses e dissertações; ler artigos que, mais brevemente, interferem no debate mais amplo; ler passando os olhos atentamente pelas linhas, pelos parágrafos, atravessando capítulos e tomos por dentro, pelos meandros, sem deixar que o corpo e a alma se ocupem demais de outras coisas, outros eventos. Ler é uma atividade exigente. Mesmo para quem consegue ler ouvindo música e com a TV ligada, ler é centralizador. A atenção pode até oscilar, surfando entre o refrão de uma canção de fundo e um parágrafo teórico, mas é comum que os olhos tenham de voltar, retomar, reler, até novamente engrenar. Ler é um investimento cognitivo, sem falar em gosto e fruição.

É uma infelicidade que as pessoas disponham de tempo para muitas coisas e não para ler. Mas a ideia de que ler é uma certa cena, e não outras, também não ajuda. Há um tipo de aprendizagem que só chega via leitura. Não chega de outro jeito. Pode haver traduções, adaptações, resumos, sinopses, resenhas, adequações, mas é outra experiência, que exige outro investimento de corpo e mente. Ler é um jeito de acessar o mundo (do imaterial, inclusive) complexo, mas possível. Só não dá para querer que se compre em fast food. Ler é na velocidade do humano e gastará alguma unidade de tempo de vida. É como uma experiência que não se salta: um beijo inteiro, um abraço de saudade ou de despedida, a dentição da criança, que virá no tempo de crescer e se desenvolver. Sem ler, certas coisas ficam como uma gravidez psicológica, um oco triste, apesar das aparências e até dos desejos de quem supostamente gesta.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 17/1/2020

 

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