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Sexta-feira, 24/1/2020
Tecnologias e borboletas
Ana Elisa Ribeiro


LeP

Investi alguns anos, muitos finais de semana e alguns litros de lágrimas para escrever uma tese acadêmica ultrapassada. Vejam só onde vamos dar: com os burros n'água da obsolescência - programada. É que escrevi, por alguns anos, e defendi, em um ensolarado março de 2008, uma tese de doutorado sobre "tecnologias da informação e da comunicação", um rol de coisas que, então, com menos pudor, atendiam também pela sigla TIC. Com o passar dos anos - e das próprias tecnologias e das aventuras teóricas d'aqui e d'acolá - essa sigla foi virando NTIC, TDIC e hoje sabe-se lá quantas letras carrega. É certo, só, que o peso da desatualização recai sobre os objetos de estudos e as siglas vão tentando, meio em vão, acompanhar os golpes de inovação.

As TIC ganharam um N prefixado quando os/as pesquisadores/as deram pela coisa de que tecnologias da comunicação e da informação sempre existiram, de uma forma ou de outra, com cabos e fios ou sem eles; com telas ou não; com e sem eletricidade; e assim vai. Daí resolveram todos que era mais pertinente chamar de 'novas', em especial para apontar essas que surgiram depois da Segunda Grande Guerra e que estão muito ligadas a algo muito amplo que chamamos de 'computador' ou, mais genericamente, de 'informática'.

Só que as tecnologias novas foram ficando velhas e passou a ser constrangedor chamá-las 'novas'. Em alguns casos, ficou até desrespeitoso ou esquisito. Depois de mais de duas décadas de intensa participação social, de interveniências e mudanças inegáveis, depois de aliviar & atazanar a vida de meio mundo ou mais, ficou complicado chamar de 'novas' essas TIC e então resolveram especificar mais, chamando-as de 'digitais', porque se novas não eram, ao menos que fossem mais precisamente definidas. Bom, daí que continuamos a tratar de uma miríade bem diversa de coisas.

Mode on

E as teses continuam sendo escritas e defendidas, algumas para propor teorias, reflexões e modelos, outras para analisar mais prontamente objetos, ambientes e práticas ligadas a ambos, com e sem pessoas, embora o sem pessoas envolvidas seja um bocadinho impossível.

Minha tese foi uma dessas. Investi anos, de 1998 em diante, estudando impiedosamente a leitura em telas, em ambientes digitais, com o que existia na época. Um dos possíveis objetos de observação e análise naqueles idos eram os jornais. E lá fui eu pesquisar, com direito a testes e usuários, a leitura de jornais em telas, que, na época, limitavam-se quase às dos computadores de mesa (!). O que os/as leitores/as faziam aqui e ali para ler e abrir e clicar e navegar e compreender, etc. Numa primeira etapa, sustentei tudo, o quanto pude, com um construto chamado Teoria da Relevância, que me custou bons meses de aulas e estudos apaixonados. Mais adiante, enveredei pelos estudos de História da leitura, do livro, da cultura, das mídias e ainda me meti na Linguística Aplicada e mesmo nas Ciências da Computação, com o objetivo de analisar as práticas de leitores/as, contumazes ou não, de periódicos que ainda patinavam muito para fazer o que chamavam de 'jornais digitais' ou 'ciberjornais' ou 'net' ou qualquer coisa dessas.

Quando acordei, já em 2020, observando um cenário em que muitos jornais já extinguiram suas versões impressas (às vezes com estardalhaço, às vezes como uma saída à francesa), depois de custosas e ruidosas reformulações gráficas de salvamento; em que leitores/as não pagam e nem pretendem pagar para ler jornais (e nem sequer se vierem para prover contas de e-mails e 'conteúdos exclusivos'); em que esses/as leitores/as vivem de celular na mão, lendo muita notícia, inclusive falsa; em que o jornalismo continua bastante preocupado com seu modelo de negócio no meio desta mudança toda... enfim... quando dei por mim, havia escrito uma tese que serve, hoje, como um belo relance de museu, ainda que seja possível lê-la, ainda atual, para pensar e repensar as práticas de leitura.

Em minha tese, as pessoas participantes liam em telas com dificuldade, mas em telas grandes, presas a mesas, geralmente em ambientes fechados (isso se parece a história do livro... em alguns aspectos...), quando os celulares ainda quase só serviam para telefonar e enviar torpedos e os tablets não tinham nascido (e morrido em seguida). Os jornais eram páginas com links e algumas tentativas de pirotecnias multimodais, aprendendo ainda o que fazer com áudio, vídeo e, aliás, com o/a próprio/a leitor, que chegava perto demais da coisa toda.

Tablets

Uns anos atrás, uma experiência dessas de obsolescência e de mudança de cenário ocorreu a uma aluna de mestrado que orientei. Jornalista, ela resolveu pesquisar jornais em tablets, objeto que, segundo o discurso de vendas daquele momento (coisa de 8, 7 anos), era não apenas a bola da vez, mas também o futuro das comunicações. Bom, eu desconfiava que não, mas quem era eu para dizer, não é mesmo?, diante da propaganda da Apple? Bem, o fato é que os tablets que vejo hoje têm a função principal de babás de bebês e crianças, e não aquela que prometiam as empresas e a propaganda. Pois então: a estudante estudou, estudou e foi analisando um grande jornal para tablet, versão isto, versão aquilo, e pum! De vez em quando, uma versão era 'descontinuada' e a outra era 'substituída' e a moça ia ficando tensa. Sim, pesquisou, defendeu, tornou-se mestre, inclusive relatando essa dificuldade toda de pegar um assunto que escoa feito água, que escapole entre nossos dedos, feito areia. E num momento de desabafo, um dia, na coxia, ela me disse, meio triste: "ah, se eu tivesse estudado os jornais para celular...".

Minha linda, eu disse, seria outra pesquisa, não seria uma solução. Talvez aquela dissertação tivesse um pouco mais de fôlego, já que os celulares e suas telinhas espertas passaram rapidamente à prevalência entre as possibilidades e preferências de Deus e Todo Mundo, mas certamente muita coisa teria mudado, nesse bololô frenético.

Ela não ficou completamente triste. Seu trabalho rendeu boas reflexões. Agora imaginem quem dedicou anos a estudar... sei lá... interações no Orkut! É até difícil ler sobre isso hoje em dia. Ninguém sabe mais o que era aquilo, como funcionava, qual era o regime de interações que o ambiente propunha ao/à usuário/a, que nomes as funcionalidades tinham e tal. Uns tempos atrás, a Cabify fez uma promoção para dar descontos nas viagens e a gente tinha de resolver umas charadas. As respostas eram nomes de elementos de interação do Orkut. Eu não me lembrava de quase nada! Não fosse eu consultar os/as amigos/as pelo WhatsApp, eu teria ficado sem os descontões.

Outros lances obsolescentes

Até que para a escala temporal da web, o Facebook e outras redes estão durando muito, mas é certo que o regime de interação, as funcionalidades e muitos outros elementos já sofreram alterações importantes, coisas que deixaram muitas teses com falhas de visualização ou Erros 404. É nisso que dá estudar tecnologia.

Escrevi uma tese sobre leitura em telas quando as pessoas não liam clicando diretamente nelas. Imaginem! A gente ficava a meio metro ou mais da tela e não adiantava nada tocá-la. O máximo que acontecia era ter de limpar logo a mancha gordurosa da impressão digital. Quando fiz doutorado, as pessoas liam jornais digitais que imitavam páginas impressas, fazendo cantinhos de folha e barulhinhos emulados. Isso ainda fazem, admitamos, mas já estamos noutra era da leitura em multitelas e multifunções.

E nem deve ser só isso. Minha tese lidou com uma configuração social em relação às tecnologias que mudou muito. A sorte é que eu sabia disso enquanto escrevia. Sabia que era areia e sabia que ia escapar e sabia que isso também era lindo. Podia ser quando um estudo passa de novidade a retrato de um momento, sendo agora otimista, claro.

Borboletas

Reli uns trechos da minha querida tese, um dia desses, e fiquei pensando em quanta mudança vi acontecer. Pensei que aquelas pessoas que participaram dos testes que propus (eu e minha amada orientadora) devem hoje navegar em smartphones e repassar fakenews, conforme nossas práticas de hoje, esquecidas, talvez, de suas práticas mais 'antigas' e passadas. Talvez continuem, afinal, tendo dificuldades de compreender o que leem, embora se desloquem espertamente pelos links, questão que se torna cada vez mais desafiadora, tanto para o jornalismo sério quanto para a educação.

Continuo pesquisando a leitura e suas tecnologias. Continuo interessada nisso e em como mesclamos modos de fazer, em como nos apropriamos dos regimes de interação propostos, em como aprendemos, ensinamos e interferimos em nossos modos de comunicação, para o bem e para o mal. Estou sempre recolhendo flagras de aprendizagem, de letramento (digital, como também chamávamos, ali por 2000-2010), de criação popular, de trocas entre pessoas das mais diversas idades e classes sociais. Escrevi uma tese corajosa e meio encantada, em 2008, sobre tecnologias que irrompiam e rompiam, naquela década e na anterior. Ainda hoje, vejo muitas pessoas interessadas em pesquisar sobre isso e sobre o que é isso hoje. E nunca posso deixar de pensar: taí, mais um/a caçador/a de borboletas.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 24/1/2020

 

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