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Quinta-feira, 27/2/2020
Crônica à la Caio Fernando Abreu
Elisa Andrade Buzzo

Uma crônica à la Caio Fernando Abreu deve ter uma janela aberta para alguma rua em que um casal de namorados brigue ou que uma mulher lave uma vitrina de uma loja de bicicletas. Daqui deste vidro, não há ninguém, não há ódio; mas também não há amor — há um sentido frio de direção onde corta um trem, onde uma construção repousa, onde um corpo ressona, onde um navio geme por detrás de passadas neblinas.

Ainda, antes de um buraco na parede aberto ao branco rio, em cuja margem oposta no final da tarde domingueira resplandece uma forma de usina atômica e as luzes se acendem como um coro que vai assumindo o controle da voz, deve haver uma escrivaninha. Dali, tudo ganha corpo. Daquelas, bem anos 90, cheia de canetas de sardinhas coloridas, CDs, uma caixa de lenço de papéis, agenda, ingressos de cinema, folhas de sala, um coração vianense, uns recortes de postais, globos de neve.

Nesta escrivaninha, ele soluçaria só de ver fotos de "As pontes de Madison" na internet, dançaria como quem dança como o Coringa, misturando um samba, um bolero, um balé. Ao som de Jorge Ben, Djavan, Bee Gees, The Weather Girls, The Temptations, Etta James, Nina Simone, Sade, Ibrahim Ferrer ou Omara Portuondo ele simularia as leis de um universo alegre e harmônico. Teceria toda uma programação que não existe, serenava e desesperava em cinco minutos, pesquisaria fotos do gueule d'amour Jean Gabin e de Harold Lloyd em "Safety Last". Comeria um naco de queijo e beberia água de coco numa taça de vinho, imaginaria o que não é, o que será, o que não terá sido, o que poderia ter sido. E inventaria a conjugação verbal "quisiria", pois CFA sempre estava a desejar, e desejava, e queria no pretérito, no futuro e no inatingível mais que perfeito.

Passaria horas à música e à escrita, e também à leitura. Exageraria nesses quesitos supremos, ainda que haveria a possibilidade de visualizar a vida de barriga pra cima, em meditação mediúnica. E daria-se conta de que, em viciosos círculos de desejos dilacerados, a literatura continua mesmo sendo uma espécie de fim último e salvação. Escrever uma crônica tal qual o faria CFA é como se enfim déssemos conta de que a engrenagem é sempre a mesma, ainda que tentemos uma fuga classuda e acreditemos que há peças diferentes e originais, que não se encaixam na normalidade mesquinha do dia a dia sonolento. É como se a ficha, ou as fichas, finalmente caíssem, e nos resignássemos ao som do piano comovente de Yann Tiersen ou Tori Amos. Porém, na conturbação física do coração, sobrecoloca-se além das colunas no cais uma tranquila mirada de água trêmula.

Uma crônica à la Caio Fernando Abreu soa como uma tardia forma de adolescência. Lembramos, em uma toada fadística, de Marisa Monte, Elis Regina, João Gilberto, Renato Russo, Cazuza, Clarice, Graciliano, vestibular, bossa nova, geração de 30; situacionamos versos de poemas ou canções. Então, como ele, depois de olhar para dentro olho de novo pela janela, e passa um trem de dois andares com quadrados de luz na noite e silhuetas pretas de gente longe. Ressoa uma mota numa entrega estúpida. Montijo e Barreiro são nada mais que purpurina dourada de Carnaval latejando no rio negro. O navio é um fantasma disfarçado de um escuro menos escuro que o Tejo. A construção em guindastes congelados e nichos iluminados assemelha-se a uma civilização terráquea em destroços, já esquecida de si. Um ônibus amarelecido sobe com um peso e um cansaço imensos o viaduto. Há lençóis e fronhas a lavar. Uma chave no firmamento gira o mecanismo das estações e do inverno soltam-se flores e secura de primavera. Depois, um ruído surdo e incessante toma conta da noite. De onde vem tal brisa soturna? É isto uma junção macabra das vidas que não podemos ver, nem tocar, tremulando?

Naquela cidade cidade boa, quente e cinza, não nos conhecemos. Não nos cruzamos na avenida Paulista, no Cinearte, na rua Augusta, nem no Alvorada; tanto melhor, o desencontro definitivo não traz a solidão sobre a qual ele tanto escrevia. Nada precisamos imaginar acerca de nós, nada precisamos lembrar. Nem mesmo há o que necessite ser esquecido para continuar. Graças a Deus. Nossas folhas são brancas e puras, longilíneas e navegantes, como o rio prestes a caminhar à alvorada. Eis uma crônica, ao modo de Caio Fernando Abreu, como se ele a direcionasse e víssemos que tudo continua igual: chorar, chorar, e abraçar um tórrido carrilhão como quem enfim dominasse um fugitivo tempo.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 27/2/2020

 

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