busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Segunda-feira, 18/3/2002
It’s my shout
Arcano9


Numa das noites de maior vento que já enfrentei em Londres, caminhando pelas ruas vazias das Docklands, em Limehouse ou Westferry, com aquele monte de antigos armazéns reformados e transformados em apartamentos de gente rica, pisco e repisco os olhos ao sentir o aroma de peixe frito. O pequeno cartaz diz The Grapes, e comemoro - é aqui. 1583 foi o ano em que este recinto foi aberto. Vamos ver a vitalidade de tal preciosidade arqueológica. Abro a porta, o vento pára, o calor me suga.

O balcão de madeira em forma de jota, ao lado de um corredor estreito, desconfortável. O corredor que liga o pequeno salão da frente, com umas cinco mesinhas de madeira escura, ao salão de trás, perto da porta de vidro que, por sua vez, liga esse salão a uma pequena sacada com vista para o Tâmisa. A luz é envernizada, o cheiro de peixe agora se mescla com o cheiro de calor, o cheiro das pessoas rindo ou soprando as brumosas musselinosas fumaças de seus cigarros. Dickens, óbvio, evidente, de forma idiotamente previsível, esteve aqui e citou este lugar em um de seus livros. A fama também advém da culinária - o The Grapes ganhou o prêmio de Seafood Pub do ano passado. Na parte de cima (subo por pura curiosidade), depois da escada realmente estreita e íngreme, um minúsculo restaurante. Mais peixe. Que água na boca, mas... desprezo minha fome, tenho outros planos. Desço pedindo desculpas para o garçom engravatado que em vão tenta ocupar o mesmo degrau que eu; vou ao balcão e à loirinha gordinha - tipicamente nascida ao alcançe das badaladas de certa igreja de Wren na City - solicito uma clássica. A Real Ale, castanha-âmbar, vem num parto forçado, quase chorando ao ser parida no vasto copo de vidro relusente. Vem quente, vem encorpada, vem no formato de meu esôfago, e suspira resignada ao descansar em meu ventre. A pint, com seus precisos e regulamentares 500 mililitros, ainda tem uma longa jornada até seu fim.

Ontem foi St. Patrick's Day. Sempre fui às public houses, ou pubs, como preferir. Sempre segui seus mandamentos, adotei seus sacramentos. Rezei suas orações, persignei-me, não usei seus nomes em vão. E também nunca questionei, em minhas adorações devotas, por que eu ou outros são seguidores desta religião. Pois bem, hoje questiono. Responda, por favor.

"- Ah, amigo, eu não faço uma relação dos melhores da cidade, não -", diz um querido colega de trabalho, numa sexta à noite tumultuada pela música alta do pub no mesmíssimo prédio onde ganho meu pão. "Tenho o local. As pessoas gostam dos pubs perto da casa delas, onde elas vão encontrar os vizinhos, onde podem ir quando estão à tôa e só querem relaxar". Mas o que faz, me diga, o que faz um pub ser gostoso? Ele dá um sorriso e toma mais um gole de sua cerva, silêncio misterioso. Olho em volta. Há pessoas tomando vinho - o vinho é vendido em taças que, por lei, devem conter ou 125 ou 175 mililitros. Por lei, daqui a pouco o pub fecha - malditas leis. O pub fecha às 23h, um ultraje que, como tudo em Londres, tem aquela longa e consolidada explicação. Era necessário fechar para que os operários não fossem dormir tarde e perdessem produtividade no esforço de guerra, da Primeira Guerra Mundial. Era necessário fechar os pubs cedo para que os operários das linhas de produção de munições pudessem se dedicar por inteiro à labuta. E essa lei prossegue, como um eterno lembrete do puritanismo que nos faz tragar a bebida às 23h porque seremos chutados em seguida. Bebo e degusto esquecendo do tempo. Fecho os olhos. Olho em volta.

Olho em volta e tudo o que vejo é o velho Tâmisa. Minha primeira pint na vida foi num pub novo, sem nenhum valor histórico, chamado Spice Island. Fica em Rotherhide, perto de um youth hostel, lá do outro lado do rio, lá indo para Greenwich. Curiosamente, a partir do Spice, pousando meus olhos sobre as plácidas águas que viram tanta história passar, subi um pouco minhas pupilas e lá, do outro lado, na outra margem, no bairro de Limehouse, estava vendo o The Grapes, e talvez as janelas pelas quais Dickens olhou enquanto degustava um bacalhau frito. O The Grapes. O Prospect of Whitby. O The Anchor. O Tâmisa ainda está cercado de jóias de valor incalculável, e não estou falando das jóias da Torre. Estou falando do que se vê todo dia, em cada esquina desta cidade, o que se cheira, o que se degusta. O que até se despreza, por ser tão comum. Vamos celebrar o que é comum, ontem foi St. Patrick's Day.

"- Onde estou? -" autopergunto-me, tomando o segundo gole da minha cerveja resignada. Decido olhar para o teto enquanto um amigo (algum, qualquer um) me fala algo sobre como chegamos aqui e para onde vamos. Provavelmente para outra cerveja.

Os pubs são uma tradição quase arquetipicamente esculpida na cabeça dessa gente. Os romanos chegaram e trouxeram as tavernas e seus vinhos, isso há mais de 2000 anos. Os normandos, bretões e demais tribos que cá viviam, já bebiam cerveja nessa época. E adaptaram a taverna à cerveja. Foram-se os romanos, a bebericagem, prosseguiu. Aumentou o comércio, aumentou o número de comerciantes vindo para cá. Surgiram os Inns - os pubs com lugar para passar a noite, geralmente controlados por monges. Surgiu a guerra civil. Surgiu a peste. E em 1666, o mundo acabou em Londres, e toda a Londres de casas Tudor de madeira e barracos de madeira e carruagens de madeira foi tragada por um fogo tão intenso e tão letal que o centro por inteiro teve que ser reconstruído. O que sobrou dos velhos tempos? O The Anchor, do lado de lá do rio, e essa meia dúzia de pubs deste lado, como o Hoop and Grapes e as catacumbas claustrofóbicas do Ye Olde Cheshire Cheese... Sim, sobraram alguns pubs para contar história.

"- Onde estou? -" pergunto eu. Uma das minhas melhores amigas no Brasil, de visita a Londres, não me responde. Com voz alegre e ao mesmo tempo calma, seu sorriso sapeca e seus óculos meio tortos de mochileira, diz que adorou o The Spaniards Inn. Sim, eu também adoro. Tão longe do centro de Londres. À sombra do Hampstead Heath, numa casa no campo. A salinha apertada no andar de cima, uma salinha tão tipica de pub, as paredes de madeira cheirando a tabaco, escuras; a lareirinha, o chão com carpete gasto, a luz laranja macia, tão macia, tão confortável. Mas desci as escadas, com minha amiga, e com cuidado com a cabeça para não bater no teto baixo, encaminho-a para o jardim, o beergarden amplo. É primavera, e daqui a pouco vai anoitecer, mas ainda é possível sentir o odor amarelo das daffodyls, ou o das rosa e o azulado doce de outras flores e florzinhas e florzonas de multicores nos vazos à nossa volta. E sentamos. E conversamos. Ah, minha amiga Carla. Que tarde inesquecível, depois com aquele fish and chips. E a cerveja, deslizando goela abaixo, dando risadinhas. Lembra-se, Carla? A história do Pub. Dizem que um lendário ladrão do século XVIII usou a casa como esconderijo. Até algum tempo, suas pistolas estavam cá em exposição. Mas por quê o Spaniards? Há algumas explicações. Segundo Ted Bruning em seu conciso livro Historic Pubs of London, uma possibilidade é que a casa onde está hoje o bar fosse, nos tempos de James I, o refúgio campestre do embaixador espanhol, naqueles tempos de relações bilaterais amargas pós-derrota da invencível armada dos ibéricos, em 1688. Outra hipótese é que o local foi convertido em um pub em meados do século XVIII por dois irmãos espanhóis, que travaram um memorável duelo por uma mulher. Que podemos fazer se a incerteza impera? Conversar, não Carla? Conversar e refletir.

A cerveja sempre teve uma importância fundamental, reflito. Vou para outro tempo, amiga, acompanhe-me. O tempo escurece, e o gim vagabundo, envenenado, forte e violento, tomava Londres também lá por 1780, como o crack toma a periferia de São Paulo hoje. As pessoas morriam aos milhões, intoxicadas e viciadas naquele líquido amaldiçoado. O governo tentou dar o troco reduzindo os impostos para as pessoas interessadas em abrir beerhouses em 1830, no chamado Beer Act. Surgiram milhões de beerhouses, mas o gim continuou a ser consumido, embora em menos quantidade. Como o alcoolismo persistia sendo um problema sério, acabou-se com a regalia para os donos de beerhouses, apenas 39 anos depois de instituída a lei. Mas a guerra entre casas de cerveja e casas de gim estava lançada, e os produtores de gim tinham que fazer alguma coisa para reconquistar o povão, que havia sido reatraído nos anos anteriores pelo gosto ancestral do néctar de cevada. O que foi feito? Deram aos miseráveis um presente que não poderiam eles retribuir nem consumindo decalitros de gim. Deram a eles palácios. Sim, os chamados Gin Palaces. O The Salisbury e o Lamb and Flag, ambos pertinho da Leicester Square, são bons exemplos. Surgiram nos bairros mais pobres esses pubs que, se aproveitando da mais alta tecnologia existe na fabricação de espelhos, vidros laminados e lâmpadas a gás, disponibilizavam um cenário de sonho. Casas luxuosas, aconchegantes, nada identificadas com as favelas, nem com os cortiços e ainda assim.... bem no meio do lixo.

O lixo. O lixo da esquina da Tottenham Court Road com Oxford Street.

Milhões de jovens jogado latas de coca-cola vazias e restos de batata frita do Burguer King no chão. É sábado, 14h, cheiro de lazer, tempo para gastar e acabei de me mudar para cá. Caminho pela High Holborn, quem sabe viro e ando para as bandas da Russell Square, ainda é cedo, o British Museum ainda demora a fechar, o dia está cinzento como de costume, a chuvinha é intermitente, o sobretudo é rançoso. Mas caminho. Bate-me uma sede. Um pub aparece no caminho e penso como sou sortudo em ter uma Guinness a meu alcance. Entro no Princess Louise.

(Sim! Leitor! Eu pago esta. Sim, para todo mundo. It's my shout, dizem os ingleses nessas situações. Um grito de puro prazer embriagante e embriagado. Aproveite se você mora em São Paulo, vá ao velho O'Malleys, ou a esse novo que nem sei como é, o tal do All Black. Eu pago, agarre sua stout irlandesa e entre comigo no Princess Louise.)

Um balcão redondo, oval, sólido, tomando o centro da sala, aparentando ser de granito e sólida e ancestral madeira. O teto de superfície irregular, vermelho com detalhes abundantes em alto-relevo, pintados de dourado, a fumaça dos cigarros praticamente solidificada, esculpida com perícia pela atmosférica cordialidade dos jovens que me atendem. Não é uma free house - só são vendidas cervejas de uma marca, a Samuel Smith. Mas a stout, ainda que não seja Guinness, é surpreendente, sua diferença das demais stouts é intrigante. Intrigante de tal forma que pondero meticulosamente, apoiado no balcão, sobre suas variadas coordenadas gustativas. Podero olhando para os riquíssimos vidros e espelhos e as composições feitas com azulejos, com profusão de cores e texturas, em cada uma das paredes. O engenho artesanal da Londres vitoriana, da época em que Jack The Ripper andava por aí, da época em que tudo que era proibido, era perigoso e despresível e delicioso e irresistível. Os mosaicos nas paredes são o mais chamativo. Ergo-me e, num momento de entrega à luxuriosa curiosidade, testo meus dedos sobre a superfície dos azulejos coloridos, formando padrões decorativos simétricos e indefiníveis. Com minhas mãos, em um segundo, recrio os passos do artista na criação da obra. Divino. Mas o que mais agrada, o que mais hipnotiza, é o caminho que a luz da tarde nublada faz para adentrar todo o salão, a forma com que ela suavemente envolve o balcão oval no centro do pub e ressalta seu brilho e a prateleira atrás do bartender. A prateleita, com suas garrafas de gim e whisky, coroada por um lindo relógio antigo, pequeno e quadrado, no alto de tudo. E pensar que este local, tesouro vitoriano, quase desapareceu um dia. E esta cerveja está desaparecendo. Preciso de outra.

E não vou ao British Museum. Por quê? Porque Princess Louise era o nome da quarta filha da rainha Vitória. A presente decoração data do ano de 1891, 19 anos depois do bar ter sido aberto. O assentos e mesas foram todos projetados pelo arquiteto e designer Norman Shaw, um desconhecido, que botou 20 anos de sua vida nos projetos - 20 anos imaginando, desenhando e executando os móveis, para nos contar sobre seu tempo. É emocionante. Cada superfície do pub, cada centímetro de parede parece trabalhado. Lembro do Brasil - talvez o melhor paralelo seja com um altar de Aleijadinho. Engraçado esse paralelo, o sagrado e o profano, a bebida e.... a religião. Ao terminar a cerveja, oro em silêncio. Sempre segui esta religião. Esta elucidação.

E saio do pub, este real, inegável, British Museum. Não, não sou alcoólatra, sim, elucido-me, e se o elucidar é etílico, é melhor! Volto pelas ruas de Holborn e dou de cara com as Docklands. Mas o vento está forte demais, e o sobretudo voa, e minhas orelhas estão frias, e já é tarde, e eu moro longe, e amanhã trabalho. Mas como é bom saber que posso me elucidar numa pint! Sempre, garantido. É só procurar um lugar para me contar uma história. Há tantas histórias por aí que você não conhece. Histórias até de você mesmo. Será uma pena se você se recusar a ouví-las...

Para ir além

Os pubs citados neste artigo estão certamente entre os melhores de Londres. Não deixe de visitar pelo menos um deles quando passar por aqui!

The Anchor
1 Bankside, SE1
Metrô London Bridge

Ye Olde Cheshire Cheese
Wine Office Court, 145 Fleet Street, EC4
Metrô St. Paul

Lamb & Flag
33 Rose St., WC2
Metrô Leicester Square

Princess Louise
208 High Holborn, WC1
Metrô Holborn

The Salisbury
90 St. Martin's Lane, WC2
Metrô Leicester Square

The Spaniard's Inn
Spaniard's Rd., NW3
Metrô Hampstead
(Para chegar é melhor pegar o ônibus 210, ou você terá que caminhar cerca de dois quilômetros)

Hoop and Grapes
47 Aldgate High St.,EC3
Metrô Aldgate

Prospect of Whitby
57 Wapping Wall, E1
Metrô Wapping

The Grapes
76 Narrow St., E14
Metrô Limehouse ou Westferry DLR

Historic Pubs of London, de Ted Bruning, editora Prion, custa 12,99 na Borders Bookstore de Oxford Circus.

Uma pint de cerveja em Londres custa, dependendo da localização do pub, de 2 a 3 libras.

Arcano9
Londres, 18/3/2002

 

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês