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Sexta-feira, 8/5/2020 Sobreviver à quarentena Luís Fernando Amâncio Todo mundo gostaria que sua vida fosse um filme. Emoção, trilha sonora, reviravoltas empolgantes e, sobretudo, final feliz. Mesmo que não fosse uma obra-prima da sétima arte, uma vida-filme provavelmente seria mais saborosa do que nossa vida real. Imaginem, nossa rotina editada, só os melhores momentos. Seria muito conveniente. Afinal, vamos combinar, um dia regular conta com momentos inglórios, entediantes e que, enfim, poderiam muito bem ser cortados. - quem quer nos ver indo ao banheiro?, cortando a unha?, lavando a louça?, tendo câimbras matinais? Flashbacks seriam adequados para resolver discussões: “eu fiz isso!”, “fez nada, fui eu”, “você nem estava lá!”. De repente, surge o flashback e nós descobrimos, com tecnologia de rejuvenescimento ou com o trabalho de atores mais jovens, quem, afinal, fez seja lá o que for. Por outro lado, um flashforward seria formidável para o pessoal mais ansioso. Em meados de março, quando notícias informavam que a pandemia do coronavírus se instalava no Brasil, a minha sensação era de estar em um filme. Uma produção de baixo orçamento, é verdade, mas de tema apocalíptico. As ruas vazias, o comércio fechado, pessoas de máscara conversando à distância. Parecia filme de ataque zumbi, ou meteoro vindo em direção à Terra. Até trilha sonora surgiu na minha cabeça. O momento mais dramático foi ir ao supermercado. Pessoas com carrinhos de compra abarrotados com todo tipo de enlatados e macarrão. As prateleiras esvaziadas. Senti como se a qualquer momento alguém pudesse gritar "já chegou o disco voador!" e o terror iria se instalar. Chamou a minha atenção a dramática ausência de dois itens nos supermercados: papel higiênico e leite. Se a ideia das pessoas de ficar em casa tem essa prioridade, leite e papel higiênico, acredito que muita gente tem intolerância a lactose e não sabe. Em portais de notícias e redes sociais, relatos de desespero. Mais do que o medo do vírus, percebi que o pânico das pessoas era pensar em ficar em casa, isolados. Como assim, teríamos que sobreviver sem butecos, sem academia, sem pegar ônibus lotado para ir ao trabalho? Há vida sem encontrar com os amigos? Para alguns, vamos falar a verdade, o mais desesperador seria suportar o longo confinamento com suas famílias. Novamente, minha vida-filme soltou um refrão musical: “you were born to be my baby/ And, baby, I was made to be your man”. Essa foi a sensação que tive em relação ao isolamento social. O que as pessoas viam como pesadelo, um sacrifício, pra mim era a programação de um fim de semana prolongado. Ou, minhas férias regulares quando não tenho dinheiro para viajar. Não era um bicho de sete cabeças para mim. Foi aí que meu filme de apocalipse mudou o gênero e se tornou película de super herói. Toda uma trajetória de marginalização, de críticas sofridas por ter um estilo de vida antissocial, ocultavam, na verdade, meu poder oculto. Eu fui feito para viver essa quarentena. Talvez eu seja parte da evolução da espécie, uma variação genética que vai dominar o mundo após a metade da população mundial morrer entediada nessa quarentena. Misantropos do mundo, uni-vos – simbolicamente, é claro: o momento agora é nosso. Hoje, nós somos uma elite. Enquanto a humanidade está em total desespero ao lidar com o isolamento social, zerando o Netflix, fazendo exercícios na sala para liberar endorfina, assistindo lives para se sentir na balada, nós, os antissociais, estamos tranquilos. Salvando o mundo sendo nós mesmos. Foi a reviravolta da minha vida-filme. Se, por longos anos, eu me achava aberração por estar em casa em um sábado à noite (enquanto as outras pessoas tinham certeza disso), agora, eu dou risadas. Parece que o jogo virou. Mas como a vida não é cinema, logo superaremos a pandemia e eu retornarei para o meu lugar: o de pessoa introvertida e impopular. Por isso, usarei esse texto como flashback, um registro de que um dia eu fui tendência. Aquele que já vivia em isolamento social antes de ser modinha. *** Se você chegou até aqui, obrigado. E seguem duas informações. A primeira, menos relevante, é que tenho publicado minicontos no meu Instagram. Pretendo utilizar essa rede social para divulgar textos a partir de agora, além das minhas tradicionais fotos mal batidas. Quem quiser acompanhar, é só acessar o link. A outra informação é que, apesar deste texto brincar com um assunto sério, é um momento de, mais do que antes, ter empatia com o próximo e buscar atitudes solidárias. A pandemia e seu impacto é coisa séria. Por isso, ao longo do texto, aproveitei para divulgar projetos que atuam em favor daqueles que estão sofrendo com o impacto do coronavírus. Se tiver condições, ajude. Luís Fernando Amâncio |
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