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Terça-feira, 12/5/2020 A poesia de Carol Sanches Jardel Dias Cavalcanti A poeta Carol Sanches lançou em 2019 o livro de poesias Não me espere para jantar, publicado pela editora Patuá. O livro é composto de 50 poemas, divididos em 5 séries, denominadas, na seguinte ordem, “o ipê lá de casa”, “um ovário a menos”, yo soy el arma de fuego”, “do tempo do lambari” e “dois minutos". O nome de um livro de poesia pode servir de chave interpretativa para o conjunto dos poemas que ele possuiu. Creio que o livro de Carol Sanches se encaixe nessa categoria. Não que a leitura individual de cada poema deva estar sujeita a uma interpretação unicamente através dessa chave. Cada poema é um universo particular, sendo escrito ao sabor de alguma indagação pessoal, tensão momentânea ou referências culturais específicas do poeta. Embora - não podemos deixar de pensar assim - nessa chave interpretativa que é o título, esteja também a possibilidade de demarcar um aspecto saliente no livro, que não deixa de chamar a atenção. O título do livro reproduz a famosa frase “não me espere para jantar”, que é dita quando alguém tem outra coisa para fazer fora do universo doméstico. Ou seja, quando a vida vai se desenrolar, nem que seja por alguns instantes, fora de casa. No caso dos poemas de Carol Sanches, nota-se uma espécie de interesse pelo universo da cidade, seja em sua relação com a paisagem urbana, da natureza, ou de aspectos corriqueiros da vida cotidiana. A cidade é peremptoriamente sua casa. No poema de abertura do livro, denominado I (todos os 50 poemas são nomeados por números romanos), já se pode ver a demarcação desses espaços dos “outros quarteirões” praticamente assimilados como se fossem a própria casa da poeta. o ipê lá de casa acordou rosa assim acordaram todos os outros ipês de todos os outros quarteirões lá de casa O foco da atenção - embora à primeira vista seja o ipê, que é um elemento externo à casa -, são os quarteirões, morada da poeta, lugar onde tem sua captura dos elementos do mundo, pois ali, parece, é sua morada ideal e local de confronto com as possibilidades da vida. Nessa primeira série de poemas é mais marcante como “a natureza urbana das árvores” define a relação da poeta com o mundo externo. Seja na sua apreciação ou mesmo dando voz às árvores, prisioneiras do espaço da cidade, tal qual a própria poeta: “talvez um dia/ a mais rebelde delas/ se junte a mim/ num impulso feroz/ (...) somos tão parecidas/ abro o vidro e estico involuntariamente o pescoço/ por favor/ preciso respirar/ mais alto”. Para além das árvores, outros animais e eventos da natureza (morcego, vento, minhocas, peixes, planetas, são elementos onde a poeta enfrenta seu Eu numa projeção de possibilidades de existência ou revolta, de afetos ou desafetos ou algum problema relativo à existência doméstica, o que é mais desenvolvido na série “um ovário a menos”. Nesse contexto o “hoje eu volto para casa” fermenta uma tensão maior do que nas situações onde a vida se desenrola fora de casa. Na série “yo soy el arma de fuego”, inscreve-se a poética da escritora, na definição e afirmação clássica do (des)lugar da arte e de sua utopia (desde Platão, quando o poeta é expulso da República), dita diretamente na afirmação do poema XXII: “a arte pertence ao campo/ das inutilidades/ (...)/ reivindiquemos, pois/ o direito ao campo das inutilidades (...) só o que é inútil/ não faz partido com guerras movimentos de ódio intersecção/ de ideais/ só o que é inútil é capaz de mudar/ o mundo”. A essa perspectiva (leminskiana) da arte como objeto inutilitário, soma-se o conclame utópico do “não existe poesia neutra/ tímida/ poesia de meta/ o que há é o fundo sem/ perspectiva de chão”. Há também espaço para a existência amorosa nessa mesma série e na seguinte “no tempo do lambari”, nos poemas XXX e XL. No mais belo e lírico poema do livro, o de número XXX, a presença do amado transtorna e transborda o desejo da poeta, que se vê como uma bomba, pronta para ser desarmada. Vale reproduzi-lo aqui para deleite do leitor: “só de te ver assim passando por mim minhas partes se recolhem apertando os lábios guardando-me em carne segredos úmidos num perplexo estado de gerúndio só de te ver assim passando por mim comprimo o desejo como quem (prende o ar e) estufa por dentro embolando infinitos nós por todo o meu corpo inteiro ativando a bomba num tic tac de-que-aguarda-ser desarmada só de te ver assim, passando por mim me entra até enxame de abelhas africanas enquanto vou pedindo rogando implorando que me enxague as picadas numa marola demorada que vai do atlântico ao pacífico sul daí me perco nas voltas de mim e da terra vou-me dando em manobras durante a pele aguardando em meus poros côncavos os carinhos de mim vou hasta el fin da fronteira da areia com o mar das minhas correntezas translúcidas só de te ver assim passando por mim”. Na série final, denominada “dois minutos”, o espaço para o niilismo diante da existência que se faz passado se exprime no poema XLV, quando o bater da meia noite deixa entrar o maior vazio na imagem dos “degraus com suas passadas de ar”: "o passado estala no piso/ envergado pelo tempo/ as paredes escondem/ camadas de perfumaria antiga/ os ponteiros do relógio se debatem/ confusos, sem saber se ficam/ ou continuam/ a atmosfera escura/ cheira a vazio/ mas nada disso se compara aos/ degraus/ com suas passadas de ar/ à meia noite”. Os poemas exalam vida, seja nas reflexões sobre a velhice, os amores passados, o tempo que tudo corrói, a incerteza do presente, a maternidade, o esquecimento, a desilusão, todos elementos intrincados nesse emaranhado de pensamentos e emoções filtradas pela linguagem, por vezes entrecortada, por vezes numa dicção coloquial, onde o obscuro e a clareza da existência existem como luz e sombra, se debatendo para gerar a fagulha da poesia, “como princípio do fogo/ minutos antes do incêndio” da vida. Jardel Dias Cavalcanti |
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