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Sexta-feira, 12/8/2022 Jô Soares (1938-2022) Julio Daio Borges Quando soube da morte de Jô Soares, pensei em discorrrer sobre como me converti em seu “inimigo público número um” - ou, no mínimo, em seu principal detrator. (Parece exagero, mas ocorreu de fato.) Só que - vendo as manifestações de pesar nas redes sociais - eu decidi ser mais construtivo, digamos assim, e discorrer sobre como o mesmo Jô Soares foi uma grande influência para mim, nos anos 90, com o “Jô Onze e Meia”, no SBT. Quem assistiu ao Jô nos seus derradeiros anos, na TV Globo, guardou a impressão do humor mais escrachado, do tipo “pastelão”, dominante no “Programa do Jô” (2000-2016). Graças à pressão da audiência, e possivelmente da própria Globo, Jô Soares fazia mais sucesso explorando as “idiossincrasias” - ou literalmente tirando sarro - de cada entrevistado... do que tendo conversas minimamente produtivas e interessantes. Fora que o “padrão Globo” de qualidade - o mesmo que leva à divulgação dos artistas e das atrações da própria Globo - foi progressivamente inibindo qualquer crítica, ou até ponto de vista mais controverso, principalmente em relação ao “poder” (político ou não), transformando o Jô Soares “sem papas na língua” do SBT no “Gordo” anódino, e finalmente sem graça, da Globo. O “Jô Onze e Meia” (1988-1999) foi ao ar no SBT, sempre gosto de frisar, como uma homenagem, do próprio Jô Soares, aos grandes programas de entrevistas da tevê americana, cujo formato - uma espécie de revista de variedades, com pitadas de jornalismo sério e até editoriais - fez com que essas atrações, quando bem sucedidas, durassem décadas, convertendo seus apresentadores em ilustres presenças na vida nacional e no debate público. Mais ou menos como foi Jô Soares nos anos 90. Nada exemplifica melhor a influência de Jô, sobre os destinos da nação, do que a sua campanha pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, junto a Boris Casoy, na televisão. Jô Soares não derrubou o presidente sozinho, nem o Boris, mas, sem eles, Collor não teria caído tão rápido, ou talvez não tivesse caído. A artilharia do Jô “daquele tempo” - aplicada ao mandatário de turno - não teria deixado o Congresso tão engessado e nem a audiência tão dividida. Nessa época, eu assistia ao “Jô Onze e Meia” diariamente. Estava na faculdade e obviamente não ficava até à meia-noite aguardando a entrada do Jô, mas eu gravava, todos os dias, ou simplesmente programava a gravação. Hoje, videocassete é uma palavra quase esquecida, mas não havia internet, vídeo “on demand”, nem streaming. O que mais me impressionava, contudo, não era seu ativismo, historicamente importante, nem seu jornalismo, igualmente pertinente - e, sim, a sua cultura. Para começar que Jô Soares falava inglês, francês, espanhol, se virava em italiano e até se arriscava em alemão. Nos três primeiros, era fluente e conduzia suas entrevistas como um “native speaker”. Paulo Francis dizia que, com seu inglês, Jô poderia, tranquilamente, montar um espetáculo na língua de Shakespeare e se aventurar em palcos nova-iorquinos. Mas Jô Soares, em todo seu cosmopolitismo, nunca abandonou a cultura brasileira - e essa postura foi, igualmente, objeto de minha admiração. “Pense globalmente; aja localmente”, profetizou Yoko Ono (o slogan da IBM veio depois). Lembro de entrevistas inesquecíveis, como, por exemplo, a de Tom Jobim, em que ele reclamava da “obrigação” de ter de compor toda manhã (ele usava a palavra “task”, para exemplificar). Lembro de entrevistas marcantes como a de Caetano Veloso, ao lado de Gilberto Gil, no lançamento de “Tropicália 2” (1993), em que Caetano perdia a paciência, as estribeiras e se exaltava contra um jornalista do New York Times. “Se você fala português!”, berrava. Lembro até das entrevistas que Jô Soares não fez e que gostaria de ter feito. Com Dorival Caymmi, por exemplo, que, na sua proverbial “preguiça” de compositor bissexto, preferia não sair da Bahia (e nem da frente do ventilador). E lembro da entrevista, não realizada, com Senor Abravanel, o Silvio Santos, que Jô Soares mencionou ao receber dele - do “patrão” - o troféu Imprensa. Provavelmente li o “Chatô” (1994), de Fernando Morais - um livro que me mostrou como o jornalismo poderia ser uma grande aventura - graças ao Jô Soares, que o mencionava frequentemente. A editora Companhia das Letras, aliás, era uma presença constante, sendo que contava poucos anos de vida. Jô Soares era um leitor, no melhor sentido do termo, e só por isso já se diferenciava da maioria dos apresentadores, entrevistadores e mesmo “podcasters” de hoje. Tive a oportunidade de assistir a uma gravação do “Jô Onze e Meia”, que convidou os alunos da Poli para servirem de plateia, em 1994, ano em que o Ayrton Senna morreu e traumatizou o país. Fiquei impressionado que Jô gravava tudo - todas as quinze entrevistas da semana - em apenas dois dias. Era cansativo de assistir ao vivo, até para mim, que era fã, mas Jô conduzia com maestria e trocava de assunto sem fazer esforço. Encontrei-o pessoalmente, no show do “Quanta” (1997), de Gilberto Gil, no então Palace - e aproveitei para perguntar quando sairia a entrevista com Rubem Fonseca, minha maior influência na literatura brasileira contemporânea. Eu sabia que Jô havia tentado e não tinha conseguido atrai-lo. “É muito meu amigo”, declarou, “mas me disse que só vai me dar uma entrevista... na Alemanha!” (país de predileção do grande contista). Minha polêmica com Jô Soares teve menos a ver com ele, como pessoa, do que com ele, como autor. Foi na época em que comecei uma newsletter, logo depois de “A Poli como Ela é...” (1997), assinando J.D. Borges, e antes do Digestivo. Resolvi comentar, com desassombro e sem nenhum opinião preconcebida, seu romance “O Homem que Matou Getúlio Vargas” (1998). O problema é que não era um bom livro, para dizer o mínimo. E eu não me conformava que o mesmo Jô Soares - que eu admirara tanto - pudesse ter escrito aquilo... Das duas, uma: ou escrevia muito mal e nunca deveria ter publicado; ou tinha um ghost writer péssimo e nunca deveria ter autorizado a publicacão. De qualquer modo, ficou ruim para ele e para seu editor (que tampouco deveria ter publicado). O problema do Brasil é que as pessoas não leem - ou leem pouco, e acabam consagrando embustes. Mormente quando o autor é influente em sua área de atuação - e ninguém se atreve a contestá-lo. Ou seja: primeiro que ninguém lê; segundo que, quando lê, não tem base para saber se é bom; e, terceiro: mesmo quando acha ruim, não se anima a enfrentar o consenso. Até porque... Quem se importa? Eu me importava. Eu era um franco atirador, tinha me formado na Poli/USP - uma façanha maior do que passar no vestibular da Poli -, era trainee do Itaú, ou já estava no ABN (não me recordo exatamente), namorava a mãe da Catarina, me correspondia com o Daniel Piza e nada poderia me abalar. Fora que eu não pleiteava uma posição na imprensa e nem sonhava em publicar na Companhia. Meu texto poderia ter caído no vazio, mas o “Observatório da Imprensa”, de Alberto Dines, resolveu compartilhar - inclusive na sua versão impressa, que circulava por todas as embaixadas... Aconteceu que a BBC de Londres estava fazendo uma matéria sobre o Jô e um jornalista inglês - cujo nome não guardei - resolveu me entrevistar, porque eu era a única pessoa, no Brasil, que tinha coragem de criticar o Jô. A entrevista foi em inglês e lembro que tivemos uma certa dificuldade para explicar que o Jô Soares era uma “unanimidade”. “Unanimously acclaimed”, por fim sugeriu o jornalista inglês. Nunca soube se foi ao ar... Hoje me parece mais uma tentativa de descobrir(em) se eu realmente existia, se eu não era um simples pseudônimo - ou um “laranja” -, fazendo declarações em nome de alguém (que não queria aparecer ou que preferia não se identificar). Depois desse livro, Jô Soares lançou um último volume de ficção (se não me engano) e nunca mais se aventurou no gênero. Seus livros de memórias saíram em co-autoria com o Matinas Suzuki Jr., um jornalista experimentado. No auge do Digestivo Cultural, alguns Colunistas insistiam para que eu fosse ao Jô, conceder uma entrevista... Por mais que o Digestivo merecesse, eu nunca tive essa cara de pau... Infelizmente, para o Brasil, depois do “Jô Onze e Meia”, Jô Soares decidiu ser menos combativo, seduzido pela “estrutura” da Globo, onde fazia mais sucesso com menos esforço. Não acredito que o programa do Pedro Bial tenha a mesma repercussão. Mas seguimos tão carentes de cultura - e de crítica - quando antes. Ou mais. Jô Soares morreu... Vida longa ao “Jô Onze e Meia” no YouTube! Para ir além Leia também Quem tem medo do Jô Soares? e Anti-Jô Soares. Julio Daio Borges |
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