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Quinta-feira, 21/1/2021
Da fatalidade do desejo
Elisa Andrade Buzzo

E os beijos repetem-se em gradativo esmorecimento em um domínio invisível, em fissuras que vão se selando como quem fecha uma carta com um selo fervente, pouco importando o destinatário, já que os dedos das mãos vão se encolhendo em direção ao próprio corpo tão lentamente. Os braços vão retornando ao plano reto do desalento rente ao torso, e não haverá nada a ser entregue. Há o que se guarda, primeiro para si, depois para o qualquer, em sua importância magistral de lembrança, ainda mais depois para a desimportância do nada, a desistência.

Porque na duração do caminho do rio ainda não se sabe palpavelmente que tudo se acaba, é de natureza quebradiça e se esgarça no tecido brusco da pandemia, mas se pondera instintivamente que, isso sim, não há mais boca a ser beijada, nem desejo em que apoiar o peso do sentidos abertos e atentos.

Da fatalidade do desejo despiram-se todos os fatos, em um torvelinho lento, nos caminhos abertos no lodo, ele desfaz-se no que tinha de desfaçatez, de singular, para dissolver-se no curso de águas maiores. Anonimamente é o desejo atenuado, percorrendo os afluentes insólitos de barro contruídos pela maré baixa, e a serem destruídos pela chegada da maré alta com o entardecer. Percursos de terra liquefeita. São bancos de areia, o que some, o que transforma, o que flui, ou o que morre?

Um sentimento de falência envolve-se por uma fina capa de satisfação. Entorna-se no torvelinho dos areais, perde-se de vista, engendra-se em outras substâncias podres de algas escuras reunidas em ramalhetes abandonados na borda dos cais. É algo que se presentifica duramente, como o peso material de uma balança em que se calcam as mãos, para em seguida desalinhar-se nessas águas, volatilizar-se numa leve maresia que vez em quando sobe no passeio rente ao cais.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 21/1/2021

 

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