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Segunda-feira, 22/3/2021 A situação atual da poesia e seu possível futuro Luis Dolhnikoff Prefácio de Impressões do Pântano, recém-lançado pela editora Quatro Cantos: 1. A poesia é irrelevante. 2. A irrelevância da poesia não é irrelevante. 3. Apenas a poesia viva, isto é, feita por vivos, não interessa a ninguém além dos próprios poetas e de seus amigos (outros poetas interessados na própria poesia e na de seus amigos). 4. A poesia morta, em mais de um sentido – feita por mortos e em formas historicamente mortas –, interessa a muita gente. A poesia reunida em Parnaso de além-túmulo, do “médium” Chico Xavier, que pretende “psicografar” poetas do passado, conta, em suas muitas reedições, com mais de cem mil exemplares vendidos. 5. A poesia do presente é irrelevante. 6. A irrelevância da poesia do presente não é irrelevante. 7. O rap é uma forma poética. Seu nome é a sigla de rhythm and poetry, “ritmo e poesia”. Poesia oral em forma de “canto falado” (recorrente na história da poesia, que se chama lírica por causa de um instrumento, a lira), pôde ser tratado como linguagem musical, apresentado como arte performática e veiculado pela mídia de entretenimento. 8. O rap é a única poesia de mercado. E os rappers, os únicos poetas profissionais (que vivem de seu trabalho poético). Os demais são amadores. 9. Rap é poesia popular. 10. Além de sua linguagem, a tradição a que pertence define as possibilidades de uma arte. 11. A pintura naïf é incapaz de reproduzir a perspectiva. A perspectiva é uma invenção (um mecanismo). Só pode ser conhecida (e reconhecida, como em Pollock, nascido num jardim de Monet) através do seu estudo. 12. Arte erudita é arte com domínio da tradição. 13. Toda arte popular é naïf. 14. O jazz é a exceção que confirma a regra da naïveté (ainda que apenas em parte: seus instrumentos são os da música erudita europeia). 15. A poesia erudita, ou “literária”, é hoje irrelevante. A poesia popular não é. 16. A irrelevância da poesia erudita não é irrelevante. 17. Saber por que a poesia erudita é hoje irrelevante não é irrelevante. 18. A resposta provavelmente foi dada pelo físico e escritor britânico C. P. Snow em "As duas culturas", que trata da atual incomunicabilidade entre cientistas e humanistas (incluindo os “literatos”), o que contradiz o próprio nascimento da modernidade, no Renascimento; e pelo poeta João Cabral de Melo Neto, em duas conferências dos anos 1950. 19. Snow considera que os humanistas em geral, e os “literatos” em particular, são luditas viscerais, ou seja, rejeitam a ciência e a técnica. Como a técnica e a ciência são dominantes na cultura moderna, os poetas se tornaram contemporaneamente irrelevantes (ao contrário de outras épocas [incluindo o modernismo]) por serem incapazes de dar conta da cultura e do mundo contemporâneos. 20. Cabral considera que a poesia se tornou irrelevante porque os poetas contemporâneos consideram o leitor irrelevante. 21. Os leitores consideram a poesia erudita contemporânea irrelevante. 22. Snow: “[O] grande edifício da física moderna cresce, e a maioria dos homens mais inteligentes do mundo ocidental tem tanto conhecimento sobre ele quanto seus ancestrais neolíticos[...] Por negligência estamos deixando escapar algumas das nossas melhores oportunidades nos campos do pensamento e da criação. Os pontos de colisão de dois tópicos, duas disciplinas, duas culturas[...] deveriam produzir oportunidades criadoras[...] As oportunidades estão aí agora. Mas estão aí como que num vácuo, porque aqueles que pertencem às duas culturas não se falam. É estranho como pouca coisa da ciência do século XX foi assimilada pela arte do século XX. Vez por outra costumávamos encontrar poetas que usavam conscientemente expressões científicas, e usavam-nas de forma errada: houve época em que a palavra ‘refração’ vivia aparecendo em versos de uma maneira mistificadora, e em que a expressão ‘luz polarizada’ era usada como se os escritores se achassem sob a ilusão de se tratar de um tipo de luz especialmente admirável. Não é desse modo que a ciência pode ser útil à arte. Ela deve ser assimilada juntamente com o conjunto de nossa experiência mental, e como parte integrante dela, e ser utilizada tão naturalmente quanto o resto. [Essa] divisão cultural[...] existe em todo o mundo ocidental”. “A razão para a existência das duas culturas são muitas, profundas e complexas[...] Mas gostaria de separar uma. Se deixarmos de lado a cultura científica, o resto dos intelectuais ocidentais nunca tentou, quis ou conseguiu compreender a Revolução Industrial, muito menos aceitá-la. Os intelectuais, particularmente os literatos, são luditas naturais”. “[A Revolução Industrial] era de longe a maior transformação na sociedade desde a descoberta da agricultura. [Mas] os intelectuais não compreenderam o que estava acontecendo. Com certeza, os literatos não. Muitos deles se esquivaram, como se a conduta correta de um homem de sentimento fosse a contração. Alguns, como Ruskin, William Morris, Thoreau e Emerson tentaram vários tipos de fantasias que não tiveram mais efeito do que um grito de horror”. 23. O ludismo dos “literatos” não acomete os escritores. Todo um gênero da prosa de ficção se apoia diretamente no cientificismo: a ficção científica (e os demais não ignoram o mundo). 24. O ludismo dos “literatos” é, predominantemente, uma doença mental crônica dos poetas, que insistem em conceder ao eu lírico um lugar especial qualquer nas coisas sublimes do mundo. 25. Não há o sublime – ou o belo – no confuso e escuro nevoeiro do mundo. Mas a beleza incidental de uma ninfeia ou de uma ideia no meio do pântano. 26. João Cabral: “O espetáculo da sociedade aparecerá [ao] jovem autor coisa muito confusa, e ele não saberá descobrir, nela, a direção do vento. Por isso, preferirá recorrer ao espetáculo da literatura. A partir da vida literária que se está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. No espetáculo dessa vida literária ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pessoais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obsessiva, grupos de artistas com que identificar-se e a partir de cujo gosto condenar todo o resto. Aí começa a descoberta de sua literatura pessoal. O confrade lhe é mais real do que o leitor”. “O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória. Como a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra em nada em consideração no momento em que o poeta registra sua expressão, é lógico que as pesquisas formais do poeta contemporâneo não tenham podido chegar até os problemas de ajustamento do poema à sua possível função”. “[Hoje] não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos foram os artistas capazes de fundar um tipo de expressão original. [A] criação de poéticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos à especialização de alguns de seus aspectos, pois, em última análise, a criação de poéticas particulares não passa do abandono de todo conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especialização significa um aprofundamento, absolutamente necessário se se quer fazer a arte avançar. Essas pessoas parecem contar com uma idade futura, em que todos esses aspectos particulares serão aproveitados numa síntese superior. Entretanto, creio que esse aprofundamento é apenas aparente. Desde o momento em que arte se fragmenta, desde o momento em que sua máquina é desmontada, sua utilidade, a função que aquela máquina exercia, ao trabalhar completa, logo desaparece. Os que a desmontaram têm agora consigo peças de máquinas, pedaços de máquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele serviço a que a máquina inteira estava habilitada. [...] Portanto, o que verdadeiramente existe no fundo dessa fragmentação é o empobrecimento técnico.” “[O que] os poetas contemporâneos obtiveram foi o chamado ‘poema’ moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar.” 27. Quem quer enviar uma mensagem deve usar o celular. 28. A poesia engajada se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma causa. 29. Poesia identitária é poesia engajada. 30. “Poesia em prosa” e “prosa poética” são prosa sem narrativa. 31. Poesia é o que permanece no poema depois de se ter eliminado tudo o que não é poesia. 32. Por adição massiva de dados, algoritmos podem produzir simulacros de poemas (como já fazem muitos humanos). Ou simulacros de simulacros de poemas. 33. Algoritmos não podem criar metáforas. Ao menos, não metáforas originais e significativas. Porque o deslocamento do sentido das palavras depende de um repertório comum de usos da língua (que refletem experiências culturais de seus usuários) e de uma intervenção consciente e ativa nesse repertório em uma direção inovadora e particular, a partir de um ponto de vista individual que faça sentido cultural para o grupo dos falantes da língua. 34. Culturas são, originalmente, tribais, tanto quanto sua expressão verbal particular (a língua da tribo). Metáforas, que dependem inteiramente da língua e da cultura da tribo, não são sequer traduzíveis para outras línguas (ou tribos) humanas (“It’s raining cats and dogs”, mas não “Está chovendo cães e gatos”). 35. Explicar uma metáfora depois de a metáfora ter sido criada, compreendida e adotada por uma tribo e sua língua não explica a criação de uma nova metáfora compreensível e adotável por uma língua e uma tribo (o que depende de toda sua história e herança linguístico-cultural). 36. Somente uma certa tribo pode criar metáforas para uma certa tribo (não importa o tipo de tribo, como as urbanas). 37. Um algoritmo pode associar facilmente qualquer substantivo a qualquer substantivo, como “névoa de marmotas”. Ou “brejo de vacas”. Dessa pletora aleatória (porque pletórica e aleatória) farão sentido as associações que se aproximarem de uma metáfora humana prévia em uma dada língua (“A vaca foi para o brejo” [mas não “The cow went to the swamp”]). 38. Metáforas são (quase) pura semântica: uma complexa e sutil operação de deslocamento semântico através do anti-intuitivo deslocamento deliberado, motivado e consciente de significantes para significados imprevistos. 39. A semântica é a área em que as máquinas (ao contrário da sintaxe) mostram suas maiores limitações (porque sintaxe é posicionamento, semântica é significado – também existencial). 40. Metáforas são operações semânticas realizadas via sintaxe. “Ela é um anjo” não significa que se trata de uma mulher caída do céu. “Significa”, isto é, implica que no lugar sintático da palavra mulher se pôs uma palavra de outro significado (ou outra semântica): a palavra anjo. O resultado é quase o equivalente semântico a “ela é como um anjo”. Quase, pois se fosse apenas isso, a metáfora seria somente outra forma de comparação, e sequer seria necessária; não teria, portanto, sido criada. “Ela é como um anjo”, apesar de mais explícito, é, paradoxalmente, também mais ambíguo: pode ser interpretado como “ela tem asas”. A metáfora, ao contrário, apesar do deslocamento semântico-sintático, é inequívoca, justamente ao se constituir na figura complexa a que damos o nome de metáfora. Se “ela é um anjo”, mas não pode ser, de fato, um anjo (e ter asas, por exemplo), só resta um, e um só, significado: ela é o equivalente a um anjo. Ela portanto é, de fato, apesar de não sê-lo, e, na verdade, justamente por não sê-lo, uma espécie (a única possível) de anjo. A metáfora é o desvelamento de uma possível verdade para além da verdade possível. 41. As possíveis verdades humanas são humanas, mas não exclusivamente humanas. Outros animais (incluindo outras espécies humanas [erectus, neandertal, denisovanos etc.]) as compartilham no todo ou em parte. 42. Computadores, que não são vivos e, portanto, não são mortais nem podem imaginar ou temer a morte (ou imaginar), não podem saber (ou imaginar) o que é um anjo, ou seja, do desejo, da angústia e da necessidade de imaginá-lo, porque semelhante a um humano, mas imortal. 43. Sem empatia não há metáfora (em que pese a recente transformação do primeiro termo em um insuportável clichê das redes sociais). 44. Sem dor e temor da morte não há empatia (eu sintopenso a dor que o outro deveras sentepensa [“O que em mim sente está pensando”]). 45. Deem-me um computador capaz de dominar integralmente as inumeráveis ressonâncias sócio-psíquico-linguístico-histórico-semântico-mnemônico-existencial-culturais de uma “simples” metáfora (ou de um ser imaginário – ou de o imaginar), além de capaz de sentir empatia, temor e dor, e eu me casarei com ele. 46. A metáfora – como a ironia, o duplo sentido, a paráfrase, a referência cifrada, o trocadilho, o jogo de palavras – é uma espécie de private joke, só compreensível pelos membros do bando, o que é o mesmo que dizer os membros-herdeiros da história e da cultura do bando. Esse bando é constituído por seres humanos. 47. Se e quando humanos deixarem de ser humanos, pelo tipo e grau de integração com as máquinas, humanos deixarão de ser humanos. A poesia deixará de ser poesia. O ludismo será redimido. 48. Enquanto isso, a poesia (não restrita à metáfora, tampouco à capacidade computacional) estará a salvo da futura e próxima irrelevância humana (o “precariado”), determinada por robôs e algoritmos. A humanidade ainda não será extinta, mas se tornará em grande parte irrelevante, como hoje a poesia. 49. Uma minoria da maioria dos “novos irrelevantes”, por qualquer motivo ou motivação, ainda se dedicará à poesia, que não depende de tecnologias além da tecnologia cultural da sintático-semântica e da instrumental da escrita. 50. A poesia talvez seja uma das poucas capacidades humanas a se salvar da grande perda distópica final. Luis Dolhnikoff |
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