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Terça-feira, 23/3/2021
Poética e política no Pântano de Dolhnikoff
Jardel Dias Cavalcanti



O livro de poemas Impressões do Pântano, de Luis Dolhnikoff, lançado pela editora paulista Quatro Cantos, em 2020, merece um debate. No centro do livro está estabelecido um problema que envolve as artes, talvez, desde sempre, que é a questão de sua relação com o mundo real e as questões urgentes da política. Nesse campo, o que parece virtude, pode tornar-se defeito, podendo comprometer a poética do autor, que se salva em alguns momentos. Construído nessa tensão entre bons poemas e poemas “viscerais”, o livro está numa corda bamba. Há dois abismos para o poeta escolher cair, no da linguagem ou no do mundo real.

No filme Terra em transe, de Glauber Rocha, há uma cena em que o ator Jardel Filho diz algo mais ou menos assim: “Não é possível caber dentro de um mesmo homem o poeta e o político”. Essa era uma tensão muito comum nos anos 60-70: a necessidade de engajamento político podia surrupiar do poeta a sua necessidade de nadar contra a corrente da realidade, de se ausentar das questões urgentes (naqueles anos a ditadura militar) em prol da criação artística livre de responsabilidades sociais. No quadro atual do mundo, com o retorno visível de frentes reacionárias a problemática voltou à cena. Vamos introduzir a tese.

Introdução de um velho debate
“A política é uma pedra amarrada no pescoço da literatura, e que em menos de seis meses a submerge. A política no meio dos interesses da imaginação é como que um tiro no meio de um concerto. É um ruído que é cruel sem ser enérgico. Não harmoniza com o som de nenhum instrumento. Essa política irá ofender mortalmente metade dos leitores, e aborrecer a outra, que a viu de uma forma muito mais interessante e enérgica nos jornais da manhã.” Esta frase aparece no romance O vermelho e o negro, de Stendhal, e encontra eco no livro de Sartre, O que é literatura, onde o filósofo exime o poeta de engajamento, reservando o uso da linguagem explicativa para o romancista. Questão resolvida por Maiakovski, na sua famosa frase: “Não existe arte revolucionária sem uma forma revolucionária”.

Segundo o escritor Milan Kundera, os porta-vozes do óbvio, do auto-evidente e daquilo em que todos acreditamos são falsos poetas. Os estreitos horizontes da mentalidade paroquial não servem à criação do poeta, já que o principal fato de uma obra de arte literária não é o que ela significa, mas o que ela faz – como ela funciona, com que eficácia ela funciona, enquanto arte.

Em nome de uma percepção contemporânea de que o mundo é um amontoado de ruínas e de que o ser humano não passa de uma besta-fera (percepção que qualquer historiador sabe - desde sempre), os poetas têm sido por demais solicitados pelos fatos e pelos acontecimentos. A consequência direta da adesão a essa solicitação é que a poesia se “politizou” perdendo muitas vezes a sua preocupação primeira, que é realizar-se enquanto fato da linguagem.

A questão perigosa da poesia política é seu necessário caráter didático, que degrada seus próprios meios para falar das coisas de uma forma imediata e segundo uma linha de menor resistência para o espectador. Voltando a Sartre: “Ninguém é verdadeiramente poeta por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E se o artista apenas narra, explica ou ensina, a poesia torna-se prosaica; ele perdeu a partida.”

Já que estamos num mundo esfacelado (pessoalmente não acredito nisso, o mundo sempre foi assim, basta estudar história), recusar proposições fechadas deveria ser o primeiro mandamento do poeta, tornando a forma aberta de sua linguagem, a priori, o próprio conteúdo do poema: saber que a poesia não é um comentário, mas a coisa em si; não uma reflexão, mas uma compreensão; não uma interpretação, mas a coisa a ser interpretada. Como disse T. W. Adorno, a sociedade aparece de modo tão mais manifesto na arte quão menos representada nela estiver (para bom entendedor, uma página de Beckett basta).

Portanto, a problemática de ordenar as tragédias do mundo, os desatinos humanos e da politicagem numa sequência de versos irritados com a desumanidade (houve algum dia humanidade?) não basta para concretizar o fato poético. Citando Afons Hug: “Não se deve confundir reportagem com arte. É óbvio que a arte se alimenta do mundo real, mas não o analisa com métodos científicos, como o documental, mas cria um mundo paralelo, ou até antagônico, ao mundo real. Neste momento utópico reside, portanto, a função política da arte”. Ou como disse Albert Camus, no seu livro O homem revoltado: “Em arte, a revolta se completa e se perpetua na verdadeira criação, não apenas na crítica ou no comentário”.

A poesia não pode simplesmente servir aos desígnios da ideologia. Obras de arte devem ser o que não gostaríamos que fossem e deveriam desmentir a cada instante o que elas gostariam de ser: fugir da linguagem comum – e o discurso político é comum - como o arco-íris que desaparece para aquele que caminha em sua direção.

As inovações formais dentro da própria linguagem que um artista realiza no seu trabalho acarretam novas formas de sentir e de perceber a realidade, como também a modifica. Sujeitar o discurso poético aos ditames da “realidade político-social” é sujeitar-se à linguagem do discurso dominante, que usa justamente a linguagem ordinária - como a do discurso político - para manter sua dominação. A arte, dizia Maiakovski, não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo.

Vale finalizar essa introdução com o argumento de Silviano Santiago: “Eu acho que o compromisso do escritor, pelo menos do grande escritor, é com a liberdade absoluta. É isso que torna um livro uma obra de arte. Os textos que nós escrevemos nos últimos trinta anos são textos por demais solicitados pelos fatos e pelos acontecimentos e isso de certa maneira que é ao mesmo tempo bom, ao mesmo tempo positivo, porque você está respondendo, você está de certa maneira combatendo, você está tornando a literatura útil, socialmente, politicamente, etc., por outro lado, retira da literatura esta capacidade que ela tem de transcender o seu próprio tempo”.

E, como disse Affonso Ávila, ao comentar a relação entre poesia e participação, “a contribuição do poeta para a transformação da realidade tem de basear-se no modo de ser específico da poesia como ato criador”.

Em arte, nem sempre quem cala, consente.

Poesias do Pântano
Ao lado de excelentes poemas como, por exemplo, “Cortázar com insônia”, há vários poemas de natureza crítica em Impressões do pântano que podem apenas confirmar o que pensa qualquer cidadão médio bem informado sobre as mazelas políticas do mundo, sobre as torpezas da “mentalidade” das classe-médias ou as crises por que passa um poeta que não vê sentido na poesia no mundo atual (deveria ter um?), mas que acredita que ainda tem que poetar, nem que seja comentando as desgraças desse mundo. Esses poemas se enfraquecem quando apenas confirmam aos leitores os desarranjos do mundo que ele já conhece através das notícias de jornal ou através da convivência com seus vizinhos. Jorram intempestivos palavreados chulos (às vezes com o mesmo palavreado que ele questiona nas classes médias “liberadas” de sua repressões), desqualificando o comportamento das classe sociais, o que nos deixa um riso amargo na boca, sem dúvida, mas que abre mão de procedimentos da linguagem necessários ao fazer poético.

Contra esses “poemas sociais”, o livro tem a virtude de produzir poemas como “uma víscera”, esse sim, que trata de um drama profundo da alma humana, chegando às suas vísceras, sem ser um poema raivoso que corre o risco de ser uma narrativa de um faits-divers. Os faits divers contribuem como uma forma de estruturar o mundo, pois apelam para o imaginário da sociedade, que busca um sentido maior nestes, como se dá nos romances, em que as conexões carregam um sentido mais amplo, gradualmente revelado na narrativa. A poesia, ao contrário, deve buscar a desestruturação da mente “narrativa”, vivendo numa espécie de entrelugar entre o reconhecível e o irreconhecível, sentimento produzido pela vertigem da linguagem.

O que o leitor tem que fazer em relação a Impressões do pântano é aproveitar, numa primeira leitura, esses poemas “raivosos” e, depois, numa escolha mais refinada, deter-se na releitura dos bons poemas, aqueles que escapam do imediatismo da interpretação do real, aqueles que nos fazem devanear pelos incógnitos da linguagem poética mais madura.

Belos poemas não faltam, como “A gralha”, “A mesma”, “Ode áspera à nicotina”, dentre outros. Mas gostaria de chamar a atenção para o poema “O martelo”, que se propõe uma poética do autor. Aqui está muito de uma reflexão sobre o fazer poético de que os poemas sociais do livro abrem mão: “a secura/ pontiaguda/ da frase quebrada/ pelo martelo/ da sintaxe dura/ imaleável(...)”, essa sintaxe é o forte no livro, ela salva o livro. O poema de nosso mundo, como a sintaxe visual de Guernica, de Picasso, que estilhaça a pintura para falar dos estilhaços de uma cidade/vidas humanas picotadas por bombas fascistas. Não há realismo ali, há a destruição da própria noção de representação ou da possibilidade de se representar tamanho horror.

Não fossem estes poemas que mencionei, dentre outros ótimos poemas, sem dúvida, não sobraria “Quase nada”, título de um poema do livro:

Quase nada
um vislumbre apenas
talvez
da beleza

A mesma crítica reservada ao poeta Ferreira Gullar, no poema “a morte da morte de ferreira gullar”, funciona para o livro de Luis Dolhnikoff:

“no fim, o que conta/ é a parte boa/ como numa fruta/ da qual se corta/ um pedaço apodrecido// se o que resta tem matéria densa/ seja doce ou seca/ e mesmo amarga/ o estrago do estragado é anulado// só o que resta é a matéria densa(...)”.

Nota do Autor
A foto no início do texto, "Ave sarjeta", é da artista londrinense Ana "bacana" Lucca.

Para ir além

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 23/3/2021

 

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