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Terça-feira, 18/5/2021
As alucinações do milênio: 30 e poucos anos e...
Renato Alessandro dos Santos

De volta para o futuro criou em toda uma geração o desejo de flanar pelas lianas do tempo, e se possível com um Delorean.

Michael J. Fox, dentro daquele carro, fez escola e, hoje, as viagens no tempo, na ficção, vez ou outra ganham telas e páginas de livros que – diante da oferta incessante de obras que nossa época vive – ficam à espera de uma oportunidade, à qual a gente se agarra quando estamos dispostos a deixar de lado alguma obrigação, prontos para enveredar pelo descompromisso que uma boa obra literária pode oferecer, ou talvez um filme, ou uma série, enquanto a pandemia segue, deprimindo e oprimindo a gente.

Foi assim, aos pulinhos, com um calcanhar batendo no outro, que o romance 30 e poucos anos e uma máquina do tempo foi recebido aqui em casa, presente de uma aluna (valeu, Fernanda!).

Eu esperava pelo chamado havia mais de um ano. Até porque o romance é uma mistura de Alta fidelidade com De volta para o futuro e há quem lembre ainda de Kurt Vonnegut nessa equação.

A gente sempre acha que encontra os livros, mas é o contrário: eles que nos encontram, e quando acontece algo assim precisamos mesmo pôr a rotina na geladeira, abrir uma cerveja, sentar e ler, porque há horas em que só tentar ganhar dinheiro é medir por baixo o precioso tempo que escorre, a despeito da recompensa, parca, acolá naquele caldeirão ao rodapé do arco-íris.

Edgar Allan Poe era, como sempre, muito preciso nestas horas de alegria serena: não há segredo, basta sentar e ler o livro.

Como Edgar sempre esteve em boa estima neste latifúndio, decidi me dar uma chance, posicionei a luminária, pus o lado A de um bom disco – não me lembro qual, mas era um bom disco –, tirei os óculos para ler melhor e abri 30 e poucos anos e uma máquina do tempo, de uma autora chamada estranhamente Mo Daviau. A tradução é de Edmundo Barreiros.

A narrativa é estimulante e, após algumas páginas, sei já que não vai ser fácil abandonar a leitura para voltar ao mundo digital, onde nós todos, ultimamente, parecemos viver. Parecemos, não; vivemos mesmo ali. Até porque, não fosse assim, estaria a gente de volta aos anos 1980, quando Michael J. Fox (você de novo, Marty?), em cima daquele skate sem rodinhas, nos deixou a todos estupefatos.

E o romance aposta nas peripécias, bem ao gosto aristotélico, levando a gente a acompanhar Karl Bender (sobrenome cuja tradução, “dobrar”, não é mero acaso), um ex-guitarrista de uma banda indie de Boston, Axis, e Lena Geduldig, uma pós-graduanda em física quântica, de um departamento cheio de gente de caráter oleoso, daquelas que preferem perder um amigo a deixar de lado, por exemplo, a autoria de um artigo a ser publicado, mesmo que parte dos resultados tenha vindo de outra pesquisa, plagiados, talvez.

É assim que nos anexamos às viagens no túnel do tempo em que Karl e Lena vão se meter, a partir do guarda-roupa do apartamento alugado de um edifício decadente, e lá vamos nós, animados com a paisagem que se modifica.

Vêm complicações, cenas com bandas obscuras (mas não àqueles que, como você, sempre gostou de Elliot Smith e Galaxie 500, mesmo sem saber, né?), Fred Mercury, shows memoráveis, um cometa prestes a destruir a vida como a conhecemos – mas não a humanidade, que se adapta, como sói acontecer –, uma passadinha lá pelo ano 980 (século X), em Mannahatta, onde uma futura Nova York vai levar à falência quem se dispuser a alugar um loft, perto daquela ponte que muitos compraram, aliás, enganados, naquele expediente charlatão que Mark Twain registrou em narrativas do mais puro manjar pagão.

Eu e você poderíamos ficar algum tempo, aqui, ainda, sofisticada leitora, carismático leitor, lendo a respeito de o porquê de a leitura desse romance ligeiro valer a pena e tal, mas a vida regurgita a gente, e reclama da gente, por causa do pouco tempo que parece gerir e organizar as coisas, até porque somos todos passageiros nesse intervalo entre a chegada e a partida, não é, fulô? Let´s keep walking...

Há uma série me esperando daqui a meia hora, é sábado, é quase noite. Dark. Uma elipse, um zeugma, uma metonímia, uma figura de linguagem qualquer, capaz de significar o que não precise de explicação, serve aqui. Então, vem, como diria Marcelo D2.

Nota do Autor
Renato Alessandro dos Santos, 48, é autor de Lado B: música, literatura e discos de vinil, de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia (volumes I e II), de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (todos publicados pela Engenho e arte), além de outras obras.

Nota do Editor
Leia também "Literatura pop: um gênero que não existe" e "Road-book em alta velocidade".

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 18/5/2021

 

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