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Segunda-feira, 9/4/2001
O Canto de cisne dos Super Heróis
Rafael Lima

"Frank Miller salvou os super-heróis em O Cavaleiro das Trevas... e eu os matei em Watchmen." (Alan Moore)

Tudo começou quando dois adolescentes judeus, Siegel & Shuster, resolveram fazer uns trocados utilizando o que tinham à mão: suas prolíficas imaginações, lápis e papel, e criaram aquele que viria a ser o primeiro e o maior de todos os heróis ficcionais da era moderna: o Super Homem. Era 1938, e nem eles desconfiavam do que tinham em mãos. Mas afinal, o que um sujeito que anda por aí vestindo um calção vermelho sobre uma malha colante azul, vá lá, capaz de levantar carros, tem assim de tão marcante? Segundo Joseph Campbell, fazem parte da constituição do mito de um herói grego os seguintes estágios de vida: o nascimento complicado, em meio à crise; a educação iniciática; o chamado à aventura (a saída de casa); o auxílio sobrenatural; as provações; e o retorno ao lar. Se você olhar bem, vai ver que esses elementos são comuns aos heróis gregos, a lendas egípcias, fenícias e medievais, mas até a Cristo, e, por que não, ao Super Homem se aplicam. Porque compõem um arquétipo prontamente reconhecível, correspondente de modo simbólico ao desenvolvimento da consciência do homem, relacionado com os estágios de desenvolvimento da personalidade e ritos de passagem pelos quais o Homem passa ao longo de sua vida, desde a infância até a maturidade. Não é à toa que os quadrinhos de super heróis sejam a leitura preferida de tantos adolescentes.

Uma das grandes contradições que a existência de super heróis traz diz respeito à reação da humanidade à presença deles em seu seio: como eles alterariam o rumo da História, tal qual na música de Gilberto Gil? Como a vida cotidiana seria alterada pela presença de heróis? Siegel e Shuster parecem não ter pensado muito nisso, em parte pelo caráter abertamente fantasioso de suas histórias, em parte pela hipótese de que, caso existisse alguém capaz de dar saltos sobre prédios e arrombar portas de aço com as mãos, seria duro admitir que esse cara elegeria como primeiros inimigos linchadores, batedores de carteira e valentões que roubam seu par de dança.

Essa questão fundamental segue sem resposta por toda a Era de Ouro (1938-1945), o que é altamente compreensível, dado que o Super Homem é o símbolo maior da potência norte-americana, e seu poder sobre o mundo no pós-guerra parece tão superior e incompreensível quanto o é a presença harmônica de super heróis num mundo de homens. A partir da Era de Prata, (1955-1970), com a intensificação da Guerra Fria, guerra na Coréia, e principalmente Vietnã, que a ainda que inegável supremacia americana começa a ser questionada, e os tentáculos armados que espalha aos quatro cantos do globo começam a ser vistos como um incômodo tanto quanto a presença de seres super dotados em meio aos homo sapiens. Enquanto os demais gêneros de quadrinhos - guerra, mistério, terror, humor - se desenvolvem, o dos super heróis fica na geladeira até a chegada da Marvel, no comecinho da década de 60.

Quando Stan Lee e Jack Kirby criaram o Fantastic Four, 1961, radicalizaram num elemento particular ao conceito de super herói: as fraquezas humanas de sua identidade secreta. Se o onipotente Super Homem tinha seu contraponto perfeito no panaca Clark Kent, Lee foi mais adiante e colocou pelo menos um defeito (várias vezes físico) em cada alter ego. Assim, Thor era na verdade Donald Blake, um médico manco; a armadura do Homem de Ferro funcionava como uma espécie de marcapasso para o cardíaco Tony Stark; o Hulk era poderosíssimo mas totalmente irracional e descontrolado e o Homem Aranha, bem, conforme Stan Lee, "tinha os mesmos problemas psicológicos de seus leitores". Com esses atributos, ele se tornaria o mais popular de sua geração. Não era incomum encontrar cabeludos lendo gibis do Hulk ou do Homem Aranha nos protestos estudantis de 68, nos EUA. A Life juntou-os a Kennedy e Mohamad Ali numa capa em que listava os ídolos da juventude nessa época.

No começo da década de 70 a D.C. tinha aprendido a lição de sua concorrente e começou a criar histórias com mais fundo social - devem ter trancado Denny O'Neal numa sala ouvindo Bob Dylan o dia inteiro - do Arqueiro Verde e Lanterna Verde viajando de carro pelo país, como Kerouac, e encarando coronéis do interior, traficantes de drogas ou contrabandistas ao invés do Mestre dos Espelhos ou do Super Gorila. Ressaltar o lado realista era a tônica, e não é por acaso que naquela e na década seguinte o campeão de vendas seria um grupo de personagens abertamente discriminado e perseguido pelos "homens comuns", os fabulosos X-Men.

O ambiente estava tão ruim para os super heróis tradicionais nos anos 80 que os executivos da DC resolveram partir para a ignorância: criaram uma mini-série onde matavam metade do elenco da editora; deram carta branca a vários franco-atiradores, jovens roteiristas ingleses, para resgatarem e revitalizarem - entre os que sobreviveram ao massacre - personagens antigos e meio fora de circulação, e, cúmulo do desespero, entregou os símbolos da editora - Super Homem, Batman, Mulher Maravilha - a jovens porém consagrados artistas para serem redefinidos.

O que foi um golpe de gênio, porque permitiu o aparecimento de obras primas do improvável como o Monstro do Pântano de Alan Moore, o Sandman de Neil Gaiman, o Homem Animal e a Patrulha do Destino de Grant Morrison entre os novos. Entre os consagrados, Frank Miller fez o Cavaleiro das Trevas, salvando o Batman do ostracismo e da repetição, ganhou um filme e saiu da D.C. para entrar na História. Alan Moore teve liberdade para fazer uma mini série em 12 partes com personagens completamente novos, uma história num clima mezzo ficção científica, mezzo policial, partindo de um princípio muito simples: como seria o mundo se existissem super heróis? Parece que finalmente a resposta seria dada: Watchmen. Uma história poderosa, envolvente, com vários níveis de tempo narrativo, e sem o menor perdão em sua abordagem: pintava os super heróis como neuróticos, fascistas paranóicos, sádicos bêbados, assassinos profissionais, virando pelo avesso o conceito estabelecido. Um marco, que resolveu brilhantemente a questão criada com Siegel & Shuster. Mas criou outra: como continuar escrevendo histórias de super heróis daqui para frente? As vendas tinham explodido, os leitores estavam completamente absorvidos pelas novidades e os executivos da DC e da Marvel não viam a hora de capitalizar em cima de tudo aquilo.

A última arte de Alan Moore

De certa maneira, a resposta já havia sido dada pelos jovens roteiristas ingleses. Com uma formação cultural mais sólida e profunda que a média dos americanos, eles injetaram poesia, referências clássicas, literatura, esoterismo, mitologia e o que mais coubesse e não coubesse no terreiro dos super heróis. O problema é que logo, aquelas histórias passaram a ser classificadas como "para adultos", horror, filosóficas, tudo - menos super heróis. Mas a dúvida com relação aos heróis tradicionais continuava, e sua situação ficava cada dia mais inviável. No começo da década de 90 um tabu foi ao chão: mataram o Super Homem. Claro que era uma manobra de marketing, claro que iam ressuscitá-lo assim que as vendas vacilassem, mas não se mata um ícone de 50 anos assim. Parece que até os intelectuais se compadeceram, porque a morte do Super Homem acabou sendo o tema de redação de vestibular da UFRJ em 1992. Em pleno aniversário de 500 anos do descobrimento da América.

A falência do gênero seria decretada por quatro dos maiores nomes dos quadrinhos americanos numa convenção em São Paulo, entre eles Will Eisner e Jules Feiffer, em 1994. Quando todas as alternativas pareciam ter sido gastas, e o fôlego das imitações baratas de Watchmen e Cavaleiro das Trevas, esgotado, Alan Moore passou no fundo, de sandáias e assoviando, com a chave de ouro rodando nos dedos. E a resposta era... a paródia. Claro: ninguém mais seria capaz de levar a idéia de super heróis à sério. Então Alan Moore fez duas coisas geniais: League of Extraordinary Gentleman (LoEG) e America's Best Comics.

Em LoEG Moore reúne vários personagens literários da Era Vitoriana, Lady Wilhelmina Murray (de Drácula), Alan Quartermain (das Minas do Rei Salomão), Capitão Nemo (20.000 léguas submarinas), Henry Jeckill e o Homem Invisível em uma espécie de força-tarefa recrutada por um agente do governo britânico para desbaratar uma conspiração de um chefão da máfia oriental (Fu Manchu?), provando por A + B que o gênero super-heroístico é mais exportável e rico do que se imaginava. Toda atmosfera da Londres colonialista, sua arquitetura ciclópica, a assustadora presença do Nautilus nos mares, a sutileza dos diálogos restritos pela etiqueta - como em Jane Austen -, a inquietação que os avanços da tecnologia criavam na população, o clima aventuresco, tudo isso está brilhantemente presente na série, em meio a uma penca de citações e referências a outros clássicos da literatura da época, para os desocupados de plantão ficarem vasculhando os detalhes de fundo, com uma sutileza que ninguém consegue fazer igual.

Além de ser uma narrativa empolgante, LoEG tem todas as qualidades de uma boa paródia. Como, aliás, Moore já tinha feito em 1963, mini-série editada em 1993. Mais do que uma história contínua, 1963 era um conjunto de 6 revistas planejado para que cada uma fosse uma paródia de um dos títulos iniciais da Marvel, e em conjunto, dessem a impressão de ser os títulos mensais de uma nova editora. A graça aqui era observar o material adicional que Alan Moore acrescentava além das histórias propriamente ditas, para aumentar a impressão de realismo de seu universo ficcional, como vinha fazendo desde Watchmen. Se em Watchmen tínhamos trechos de entrevistas, livros, fichas criminais, em 1963 estamos dois níveis acima e tudo, das chamadas de capa, passando pela coluna de leitores, editoriais, propagandas, tudo é feito de modo a dar a impressão que a revista tinha sido mesmo da década de 60! Em LoEG, a mesma coisa acontece, mas a ambientação é a Inglaterra na virada para o século XX. Tudo mentira, tudo lindamente falseado, tudo absolutamente coerente.

Mas a grande surpresa veio mesmo com America's Best Comics, quando Moore não só criou como voltou a escrever mensalmente uma penca de heróis novos, cada um com sua revista própria, do zero. Surgiram Tom Strong, o arquétipo do herói, Cobweb, a heroína gostosona, Top Ten, um grupo de seres super poderosos que cuida do policiamento em uma cidade habitada por todo tipo de gente, Splash Branningan, "o vingador indelével", feito de tinta tridimensional, Jack-B-Quick, o protótipo do garoto prodígio, entre outros. Em todos eles, uma sensação de dejà vu, de regurgitação - quando não cópia descarada - de elementos de outros personagens, com muito humor. De alguma maneira, Alan Moore parece ter encontrado a alquimia que dá o tom correto para uma história de super herói, não apenas o humor do Homem Aranha, o clima policial noir das primeiras tiras do Batman, ou a ficção científica de alguns contos do Fantastic Four. Talvez a mistura disso tudo, em doses certas. E com um algo mais.

Na abertura de uma determinada história de Top Ten, a personagem principal aparece trabalhando em um escritório de advocacia. Subitamente, seu chefe surge e pede que ela feche as persianas, porque um novo e importante cliente chegaria a qualquer hora, e tinha problemas com a luz do sol, "algo a ver com problema de pele ou coisa assim". Quando vira a página, descobre-se que o tal cliente era na verdade... um vampiro! E que estava buscando, na verdade, um mediador para uma disputa com outro clã de vampiros pelo mercado de filmes de terror em vídeo. Vampiros mafiosos disputando o mercado de vídeo. Outra coisa que Alan Moore descobriu é que quem se propõe a escrever histórias de super heróis não se pode levar muito à sério... exatamente por isso elas funcionam tão bem como paródias de si mesmos. E comprovam que a injeção de realismo, mesmo que tenha revigorado as histórias por algum tempo, acabou tendo o efeito de uma dose de veneno a longo prazo.

The First American, gozação em cima do Capitão América e esse tipo de patriotada, tem uma história desenhada pelo Aragonés toda em cima de uma única piada. O personagem diz: "tudo que eu preciso é de um traje colorido com nome chamativo", e todas as pessoas que ele encontra ao longo do caminho perguntam: "traje com nome chamativo?" "Não, o nome chamativo não é para o traje colorido". Cobweb narra uma história na linha confessional de diário feminino, falando sobre sua paixão secreta pelo seu arqui-inimigo, e aqui o humor vem do contraste entre o tom romântico de suas anotações e as ameaças selvagens do vilão. Em um dos momentos memoráveis, depois de imaginar que tinha finalmente dado cabo do vilão, ele reaparece de surpresa, dizendo: "Há! Aquele que você matou era na verdade o robô do dublê do clone do meu irmão gêmeo!", rifando de uma vez só todos os artifícios fáceis de escritores sem criatividade para trazer de volta um personagem morto.

É lógico que sem um conhecimento prévio profundo, a maior parte da graça vai passar desapercebida pelo leitor neófito, que não sabe, por exemplo, que a sala de troféus do First American tem um pouco da Batcaverna do Batman, da cripta do Fantasma e da Fortaleza da Solidão do Super Homem. História em quadrinhos de super herói é coisa para nerd, para iniciado. Já se disse que a cultura pop é a mais elitista de todas, pela imensa quantidade de informação cruzada que exige para ser apreciada. Estejamos lendo um gibi do Demolidor, ouvindo uma música de Simon & Garfunkel ou lendo um poema de Allen Ginsberg.

Com tudo isso, ABCs ganhou várias indicações para todos os prêmios importantes da indústria dos quadrinhos, nenhum dos quais recebida pessoalmente pelo autor, um ex-hippie de quase 2 metros de altura semi recluso que não sai de Northampton nem por decreto, onde reside com sua mulher e filha, a criar músicas, fumar haxixe em doses cavalares e revitalizar gêneros de ficção semi esgotados.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 9/4/2001

 

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