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Quarta-feira, 4/8/2021
É um brinquedo inofensivo...
Cassionei Niches Petry

A escritora argentina Samanta Schweblin, no romance Kentukis (Fósforo Editora, 192 páginas, tradução de Livia Deorsola), traz para a literatura uma temática parecida com a abordada na maioria dos episódios da série Black Mirror: a exposição da privacidade por meio de aparelhos de alta tecnologia. Assim como nos episódios da produção da Netflix, não estamos diante de histórias de ficção científica, como pode parecer num primeiro momento, mas sim de terror, provocado não pelas máquinas, mas por quem as controla.

Os kentukis são bichinhos de pelúcia com câmeras e microfones acoplados e que, como os tamagotchis, brinquedinhos virtuais famosos nos anos 90 (relançados recentemente, mas sem grande repercussão), servem como mascotes dos seus “amos”, tomando o lugar dos bichos de estimação. Coelhinhos, toupeiras, dragões, corujas e outros animaizinhos acompanham seus donos pela casa e respondem a algumas ordens, mas sem poder se comunicar. Quem controla os movimentos é um desconhecido usuário de outra parte do mundo com um tablet, através do qual vê e ouve tudo o que acontece na casa onde está o mascote. Há quem escolha “ser” um kentuki e há quem deseja ter um em casa.

O romance é composto por diferentes histórias paralelas, que vão se desenvolvendo de forma intercalada ao longo do livro. Não há, portanto, um protagonista apenas, assim como os ambientes são muitos: uma casa de um casal peruano, um apartamento na Alemanha, um lugarejo na fronteira do Brasil com a Venezuela onde há mais cabras que pessoas, etc.

Os personagens são envolvidos nesse jogo virtual que tanto pode ser inofensivo como pode ser perigoso. No primeiro capítulo, por exemplo, que serve como uma espécie de prefácio, garotas expõem seus corpos ao animalzinho controlado por um sujeito com más intenções. Essas personagens não retornam no decorrer da narrativa. O capítulo, portanto, serve para dar o tom do que podemos esperar daqui por diante.

Vamos acompanhar então o pai que não imagina que seu filho possa estar sendo vigiado por um pedófilo. Ou a mulher que controla um kentuki com seu tablet observando sua ama ser roubada por um namorado e não sabe como alertá-la. Por outro lado, um kentuki pode ajudar seu dono a lembrar-se da hora da remédio e outro pode proporcionar que seu amo conheça lugares diferentes ou faça com que um solitário se sinta menos só. Tudo depende, portanto, de quem está do outro lado. E nunca se sabe quem pode estar lá.

O crítico literário J. Ernesto Ayala-Dip escreveu, no suplemento "Babelia" no jornal El País, da Espanha, que Kentukis não é somente “uma alegoria sobre a dependência do homem contemporâneo com os dispositivos tecnológicos que o cercam. É sobre isso, obviamente. Mas também é um argumento contra a excitante e agradável alienação que nos damos”. É a arte nos fazendo refletir.

Autora do livro de contos Pássaros na boca (lançado aqui no Brasil pela Editora Benvirá), e Siete casas vacías (ainda sem tradução), e do premiadíssimo romance Distância de resgate (traduzido pela Editora Record), Samanta Schweblin vem se consolidando como um dos grandes nomes da literatura da Argentina, país que já nos deu Borges e Cortázar, entre tantos outros.

Cassionei Niches Petry
Santa Cruz do Sul, 4/8/2021

 

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