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Terça-feira, 1/3/2022
G.A.L.A. no coquetel molotov de Gerald Thomas
Jardel Dias Cavalcanti



A absoluta radicalidade e contemporaneidade do teatro de Gerald Thomas está no fato de que ele quebra a todo momento o pacto apaziguador entre artista e público. Gerald Thomas retorna ao teatro com uma mensagem dentro do coquetel molotov. “Agora é Talibã!”. No início da peça a atriz segura uma garrafa com uma mensagem dentro, o barulho de um estridente raio a impede de abrir a mensagem, segue andando e, em seguida, tropeça em outra garrafa que é um coquetel molotov. Abertura necessária para se perceber o tamanho da explosão.

G.A.L.A. é uma peça polifônica, aberta ao infinito da composição e recomposição do texto, onde o dramaturgo coloca sua personagem num barco partido e afundando. O aspecto fluvial da fala descontínua, no seu vai-e-vem repetitivo, reforça o caráter burlesco de todo discurso que se pretende verdade ou explicação. Coerência para ele é “salsinha no meu sapato”, uma imagem surreal que faz jus ao universo de Gala e Dali. Num mundo delirante, um discurso delirante se faz necessário. Raros artistas conseguem navegar nesse mar de inconstância, insegurança, vertigem.



O cenário belíssimo, ao mesmo tempo perturbador/desolador, remete ao cinema de Fellini e às imagens românticas da barca da morte (e o primeiro objeto encontrado pela atriz é uma caveira). Um mundo afundando durante uma festa de gala. No auge do capitalismo, um planeta que não suporta mais a apropriação brutal de seus elementos naturais. A imagem do barco afundando com a foto ao fundo de duas torres (gemêas) de fábricas poluentes reforça a ideia do abismo em que a mais avançada das civilizações tecnológicas se meteu.

Pelas recordações das destruições que estão subjacentes na peça, da história (campos de concentração) à arte (de Guernica de Picasso à música dodecafônica e a afônica literatura de Beckett), G.A.L.A. não se furta ao desvario de apontar o mundo quebrado das vidas humanas e da arte como metáfora de um mundo eternamente destruído.

Tempestades interrompem a fala da personagem, sustos necessários para paralisar qualquer tentativa de emitir verdades, explicações, sugestões de caminhos. Gerald Thomas sempre questionou o papel do artista como criador de plausibilidade. Ordenar e compreender o mundo como num laboratório de ciências exatas não é o caminho para a arte.



Não é de hoje que Gerald Thomas sente na pele as dores do mundo, mas não se ressente do presente em nome de um passado nostálgico. Fatalista – "é o que temos para hoje" – assume colocar na mesa a desintegração do homem na forma da desintegração da linguagem. Nisso ele é mestre.

O texto de G.A.L.A. deliberadamente escamoteia o discurso, deixando rarefeitas as falas, mas amplia as zonas de tensão com a música, o cenário e os trejeitos de Gala (a excepcional teatralidade da atriz Fabiana Gugli). Pratos sendo quebrados ressoam uma alma quebrada ou se quebrando. Sancho, personagem ausente/presente seria a metáfora do teatro – e de todos nós – lutando contra moinhos de vento. Em uma conversa por what’s sobre críticas sucessivas ao poder, Gerald me sentenciou, fatalista: “É difícil quebrar o muro”.

Talvez haja em G.A.L.A. uma tentativa do teatro de Gerald Thomas de quebrar a memória constante do desastre – essa “faísca que atravessa os séculos”: “Pois a ruína não está mais lá! Beckett não está mais lá! Para de ficar idolatrando os cacos desesperançosos da história. Para!”. Mas não abre mão de deslocar ou truncar a narrativa. Pois no lugar das ruínas, das bombas caindo sobre nossas cabeças, estamos numa pandemia social do distanciamento total uns dos outros. Gala e Sancho se falam virtualmente, não se abraçaram depois dos seus enlaces e as mãos que se encontram no final da peça são intermediadas pelo computador que nos aproxima afastando. Como disse o próprio G. Thomas na entrevista que se seguiu à peça, Michelângelo não imaginava que entre o dedo de Deus e o de sua criação apareceria uma rachadura. Essa rachadura é o símbolo da vida humana, imperfeita, incoerente, absurda. Também é o teatro de Gerald Thomas.

G.A.L.A. não se furta, no entanto, de detratar o mundo atual, o mundo “asfixiado pelo próprio desespero”. Não surpreende que a última imagem da peça, as mãos dadas entre a atriz e a mão que sai do computador, seja a do fogo consumindo-os.



Para ir além
A peça pode ser vista no YouTube.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 1/3/2022

 

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