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Segunda-feira, 29/3/2021 Rebocos da memória: 1929, de Rafael Fava Belúzio Jardel Dias Cavalcanti Memórias só se constroem sobre ruínas. Ou embaixo delas. Ou como elas. O cronista, embora mergulhado no presente, alimenta-se também daquilo que é sem devir, mas que se apresenta aos seus olhos como o presente de uma existência destroçada. São as ruínas... que apenas ao flâneur-cronista se apresentam. O livro recém-lançado de Rafael Fava Belúzio, denominado 1929, publicado pela editora Impressões de Minas, trata de uma data, mas também de uma cidade, em crônicas que se inscrevem como ruínas. Pedaços da memória, como decalques da existência de uma pequena cidade de Minas Gerais, Carangola, que sob o peso da crise de 1929, tornou-se uma espécie de cidade fantasma e espaço intérieur para os devaneios do cronista. Composto de pequenos textos, o livro registra em fotografias as janelas, antigos casarões, ruínas de casas, anjos de cemitério, pessoas numa estação de trem ou rodoviária, um pequeno sítio. A incerteza narrativa impera. Fragmentos, em sua forma estilhaçada, vão compondo um vitral que não se completa, seja de experiências, de memórias ou de sonhos - vitral aos cacos, impossível de se colar. A abordagem caleidoscópica, num empilhar de fatos e lembranças, não oferece uma visão totalizante de Carangola. Os rebocos que a escrita vai colocando na memória ou nos fatos observados pelo cronista não conseguem tapar todos os buracos. O escrito em ruínas é o estilo que melhor se adapta à sensibilidade contemporânea, ela também em ruínas. Mesmo as datas das crônicas se misturam num vai-e-vem constante, como o fato da data de uma crônica de 2014 aparecer antes de 2010, por exemplo. O capítulo “Fotojornalismo” tenta apresentar uma possível ideia de crônica, citando autores como Olavo Bilac, Antonio Candido, Walter Benjamim, Artur Azevedo. As definições se embaralham com a própria ideia de cidade: a crônica (ou a cidade ou a memória) como “esse cemitério que tem o aspecto de um interior, um local isolado”, no dizer de Benjamin. Em outro caso, como na definição de Bilac (“Eu, o rabiscador de crônica, já sinto que me falta o solo abaixo dos pés”), onde apresenta-se a incapacidade de construção de uma história, já que falta ao cronista a possibilidade de estabelecer um ponto fixo de entendimento (ou interpretação) do real. Cambaleante, o texto de Belúzio se insere nessa consciência do fracasso de se querer definir um lugar ou quaisquer situações com alguma certeza - ou de se querer amontoar nas "caco-crônicas" uma montanha de ideias sobre uma cidade ou sua memória quando tudo parece trespassado por uma nuvem de melancolia. Um vai-e-vem de contrapontos entre a cidade grande e a cidade perdida no fim do mundo, Carangola, vai estabelecendo diferenças, mas ao mesmo tempo esclarecendo o devir da impossibilidade das duas. A antena parabólica ao lado de uma mãe dando comida às galinhas numa pequena chácara perdida do mundo é o retrato da conexão (im)possível entre dois mundos. Belúzio propõe uma viagem entre cidades - entre os recantos de um mundo que parece parado no tempo e a velocidade e arquiteturas de uma cidade grande. Nesse cruzamento de diferenças, seu texto vai estabelecendo colagens, quase de natureza surrealistas, pode-se dizer, entre imagens desconexas que se apresentam entre uma crônica e outra. Da descrição de um “bater as botas” (“Todo mundo vai trocar um dia de novela pelo último capítulo de sua vida”), até um passeio de férias pela Pampulha, em Belo Horizonte (férias como “uma anistia para as extravagâncias”), o que se constrói nas crônicas é uma tentativa de encontrar algo para além do "meu quarto, silencioso cubo de trevas". Sua cidade é esta possibilidade de evasão para o exterior, mesmo quando sabe que seu exterior é o chamado do interior, "pois como há muito interior, pode chamar o meu interior de interior de Minas." A cidadezinha está dentro do autor, aquele que observa sua “vida besta” (Drummond). Janelas com cadeados, burrinhos na rua, adolescentes comprando doces... E não o abandona a ideia de ruína: “Observo escombros e mais escombros sobre as praças... Ruínas de igrejas católicas esvaziadas, dos túmulos desabados do cemitério... Declínios... eu sou o que no mundo anda perdido tangendo um noturno, flanando na parte adormecida de Minas”. Como texto pós-moderno que é (desculpem-me por não encontrar outra terminologia), essas crônicas, em suas entradas e saídas para uma cidade que vive dentro e fora do autor, são construídas como reboco, a partir de referências de leituras, trechos de música, poemas, que aparecem aqui e ali como colagens sensíveis e poéticas diante de imagens vistas, sonhadas e/ou sentidas como motivos para uma construção textual que não deve satisfação ao real. Essa vertigem do texto (o que é isso que não é descrição, memória, relato, causo e nem mesmo a tradicional crônica?) nos coloca dentro e fora de uma cidade como dentro e fora do autor. “Carangola, decepção da minha vida... Pierrotesca... Como um som longínquo e longo de trompa num entardecer lento, muito lento...” 1929 reúne crônicas produzidas por uma espécie de resultado da superação dilatada da sensação de vazio que pode se apoderar melancolicamente de quem deixou (ou está deixando) para trás aquele sentimento profundo de pertencer a um lugar. Ao sair de sua cidade natal e passar a “morar no vazio”, a melancolia do flâneur se torna texto errante, um texto prodigioso em sentimentos que fazem o autor catar aqui e ali os cacos de uma cidade (ou da lembrança dela), mesmo sabendo que deles não poderá criar um vitral. Jardel Dias Cavalcanti |
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