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Quarta-feira, 27/3/2002
Matinê sem limite de idade
Rennata Airoldi

Há por parte da maioria das pessoas, incluindo a própria classe artística, um certo preconceito em relação aos espetáculos dirigidos ao público “infantil” ou “infanto- juvenil”. Não temos como apontar uma única causa para isto, mas a verdade é que muitos espetáculos infantis são tão desprovidos de qualidade que seriam melhor classificados como infantilóides. São histórias mal contadas, quase sempre sem muito conteúdo e de produção precária. O principal erro, no entanto, é tratar a criança como alguém incapaz de compreensão acima do burlesco e que se satisfaz com qualquer espetáculo.

Assim, ao levar um filho ao teatro o pai ou o acompanhante, deparando com esse tipo de produção, sai simplesmente indignado recusando-se a repetir o programa. Daí a importância de que as boas produções sejam adequadamente divulgadas. Acredito que um bom espetáculo infanto – juvenil ou infantil é simplesmente um espetáculo de censura livre. Deve mexer sim com o imaginário da criança, com situações educativas e que acima de tudo, desenvolvam o intelecto delas e não resumam tudo a “era uma vez e foram felizes para sempre...”.

Formas inovadoras acontecem em alguns espetáculos que fogem dos padrões convencionais, dos simples contos de fadas e trazem para cena histórias criativas e sensações extraordinárias. A criança sente-se instigada a participar do jogo e fantasiar junto com os atores; os adultos acompanhantes transformam-se em crianças e se deixam levar pelo ambiente lúdico. É este, sem dúvida, o mérito maior de um bom espetáculo de censura livre que transforma-se numa matinê sem limite de idade.

“Ufa, Que Perigo!”, direção de Roberto Lage e “Wild’ Stories,” direção de Alexandre Stockler, são dois bons exemplos que valem a pena ser conferidos. Apesar de bem distintos tanto na história quanto na linguagem utilizada para contá-la, são grandes espetáculos para qualquer idade.

No primeiro observa-se uma fusão entre histórias em quadrinhos e a boa comédia musical. Tudo é muito colorido e exagerado, o que faz com que a platéia seja facilmente transportada para uma cidade fictícia , Souzalândia, onde o pânico faz com que seus moradores queiram recorrer a super- heróis, em constante vigilância, na tentativa de se sentirem protegidos dos males da grande cidade. Quem não adoraria ter por perto um “Superetc” para nos livrar dos assaltos, seqüestros relâmpagos e de todos os crimes impunes que presenciamos hoje em dia? Aqui, ficção e realidade não são meras coincidências.

O mais importante, porém, é que tudo é apresentado de maneira sutil, engraçada, bem humorada. Os atores têm um trabalho minucioso em cena. Toda e qualquer ação cênica tem medida exata e, através de um simples jogo, -com cadeiras e poucos objetos-, criam-se em cena diferentes ambientes e situações hilárias. Devo mais uma vez parabenizar os dirigentes do espaço Ágora e seu núcleo de criação que sempre realiza seus trabalhos com foco no ator. Fica claro que, partindo de um bom texto, um bom elenco sob uma boa direção é a única coisa realmente imprescindível para se obter um bom espetáculo.

“Wild’ Stories”, contos de fantasia, é um maravilhoso jogo de sensações. Baseado em dois contos de Oscar Wilde, a fábula adaptada e dirigida por Alexandre Stokler, com criação assinada também por Lavínia Pannunzio, é o terceiro espetáculo do projeto A obra de arte está no espectador, vencedor do Prêmio Estímulo 2001. Um espetáculo que conta a história de um estudante apaixonado, que não compreendendo seu amor por uma jovem, acaba por torna-se um ser amargo, triste, perdendo a juventude e transformando-se num gigante condenado a viver num longo e tenebroso inverno. Com utilização de manipulação de objetos, imagens, sons, um universo lúdico envolve o espectador, transportando-o para um mundo imaginário, criativo e sensorial onde as metáforas e transformações acontecem de maneira surpreendente. Tudo isso ocorre num espaço cênico não convencional.

É realmente uma experiência enriquecedora não só para as crianças, mas também para os adultos. Sons, luzes, objetos que se deslocam, sombras e aromas. Todos os sentidos são solicitados no decorrer do espetáculo. Tudo isso faz de “Wild’ Stories” um espetáculo simples e emocionante, para qualquer idade

Aqui temos, sem dúvida, uma direção e atuação muito bem casadas. O mais importante é que uma simples história, dependendo da forma como é contada, torna-se uma grande vivência. Faz com que reflitamos sobre nossas vidas, sobre as mensagens escondidas atrás de palavras simples, sobre analogias que nos surpreendem. Tudo aquilo que toca as pessoas é universal, é igual para qualquer ser humano em qualquer lugar a qualquer hora. É assim que, sem perceber, somos arrebatados por esses contos de fantasia.

Feitas essas colocações, quero ressaltar que estes dois espetáculos são primorosos e dignos de serem apreciados não só pelas crianças, mas por todos nós! Aí ficam, portanto, duas dicas de ótimas matinês. Se você acha que vai ficar constrangido indo ao teatro à tarde, o que eu considero uma grande bobagem, recrute um filho de um amigo, um sobrinho, uma criança do bairro, caso ainda não tenha filhos para levar. Tenho certeza que vocês não irão se arrepender: nem você, nem a criança!

Assim, fica claro que o bom espetáculo não tem idade. Tantos espetáculos adultos, ditos intelectualizados muitas vezes não nos comovem nem nos tocam tanto como estes. Lanço assim a campanha: “Matinê sem Idade!!!” Confiram.

“Ufa, Que Perigo!!!”, direção Roberto Lage Teatro Ágora, Rua Rui Barbosa, 672, Sáb. e Dom. às 16h00 Informações: (11)3284- 0290

“Wild’ Stories”, direção Alexandre Stockler Centro Cultural São Paulo, Rua Vergueiro 1000 , Sala Jardel Filho Sáb. e Dom. às 15h00 Informações: (11) 3277-3611

Rennata Airoldi
São Paulo, 27/3/2002

 

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