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Terça-feira, 15/11/2022 Menos que um, novo romance de Patrícia Melo Jardel Dias Cavalcanti Uma espécie de Les Miseràbles à brasileira. Eis o que é o novo romance de Patrícia Melo. Menos que um, publicado este ano pela editora Leyla, é uma terrível viagem ao círculo infernal da vida dos moradores de rua, dos sem-teto, sem comida, sem rumo, abandonados à própria sorte e tratados como seres indesejados por todos os estratos da sociedade. Também é o retrato de uma humanidade que desistiu de si mesma, pois, ao criar essa espécie de não-vida para uma grande parcela da sociedade, ela se desumaniza em seus princípios civilizatórios. Patrícia Melo faz um mergulho sem igual no universo daqueles restos humanos que, com suas roupas rasgadas, sua fome constante, sua solidão irremediável, sua carência de tudo, transitam pelas ruas de nossas cidades como se não fizessem parte do nosso mundo. À margem da margem. Sem uma cama para dormir, sem um chuveiro para se banhar, sem uma mesa para comer, sem proteção nenhuma diante das ameaças constantes que sofrem no seu dia a dia nas ruas, sem privacidade para cagar, mijar ou trepar, vivendo de uma caridade que raramente vem, sendo enxotados de todos os lugares, sendo perseguidos por assassinos noturnos, por policiais violentos, chutados e queimados por lojistas que os querem mortos e longe de seus estabelecimentos comerciais – jogados à própria sorte e desgraça: eis os moradores de rua, os desvalidos dos desvalidos, que o romance joga na nossa cara nos mostrando o grau de desumanidade na qual a nossa sociedade chegou. O escritor, o artista, tem uma atração natural pelos desvalidos, pelos marginalizados. Como dizia Baudelaire, “é um amigo terno de tudo o que é fraco”. Mas é preciso coragem para enfiar o nariz nessa ferida aberta e exposta aos nossos olhos, produzida pelo sistema social injusto e desumano que se estabeleceu em nosso país. E como dizia Marx, se você quer ver o que um sistema econômico faz com as pessoas é só olhar para seus corpos, pois é ali que se manifesta de fato o estrago. E os corpos de que o romance de Patrícia Melo expõe não cheiram ao que uma pessoa normal gostaria de cheirar. É preciso que o escritor desça aos infernos para revelar o cheiro de enxofre e morte que dali exala. E sua missão é “apoderar-se da atenção pública e curvá-la com sua obra para os abismos prodigiosos da miséria social” (Baudelaire). Os órfãos das grandes cidades, esses homens e mulheres, essas crianças e velhos, esmagados pelas engrenagens de nossa sociedade que os abandona ao deus-dará, são os personagens visitados por Patrícia Melo com grandeza moral e com uma força literária raramente vista contemporaneamente, nos colocando dentro de um universo no qual jamais nos aproximaríamos, esse universo do qual, inclusive, afastamos os olhos e o nariz cotidianamente. Menos que um é um livro necessário. Cumpre a mesma função que Les Misèrables, de Victor Hugo. Ainda citando Baudelaire: “Enquanto existir, por obra das leis e dos costumes, uma danação social que crie, artificialmente, infernos em plena civilização e que complique com uma fatalidade humana o destino que é divino... enquanto houver na terra ignorância e miséria, livros dessa natureza serão úteis.” Cruzando vidas que se perdem pela miséria, pelo crack, pela violência, o romance nos faz acompanhar o dia a dia de moradores de rua: planejando suas camas no chão duro com papelões, pedindo comida, andando sem rumo e sem esperança o dia todo, sem proteção contra o sol, a chuva e o frio que os adoecem, transitam por ruas inóspitas às suas existências, entrando e saindo de albergues que limitam seu trânsito, embora ofereçam uma dignidade mínima, tentando manter-se coesos numa comunidade de despossuídos (o que lhes resta de humanidade) com destinos semelhantes, acostumando-se à doença, ao mau cheiro, à dependência alcóolica e de crack que os transtorna no seu já desesperado estado de insana miserablilidade. Patrícia Melo não nos poupa de nada, nos devolve “aqueles que sofrem por causa da miséria e que a miséria desonra”: a vida de catadores de latas para vendê-las por um mísero trocado, a busca por comida em latas de lixo de restaurantes, a precariedade da vida de meninas abandonadas pela família, homens que perderam o emprego, a casa, a família - e se encontram perdidos na prisão da miséria e do abandono, de onde é praticamente impossível sair. Também a resistência existe. O relato dela aparece no romance, nas invasões de prédios abandonados e na resistência contra tropas policiais grotescas e violentas (o famoso pobre espancando pobre), que armados de escudos, cassetetes e bombas fazem o serviço sujo quando judicialmente os sem-teto são despejados dessas moradias improvisadas e precárias. O romance de Patrícia Melo tem um propósito. Nos mostrar em que pé a humanidade chegou criando essa legião de miseráveis, transformados em algo próximo a um bicho, como no revelador poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira. Menos que um nos diz que perdemos a chance de nos tornar realmente humanos ao compactuarmos com essa desumanização. A força poética do texto da escritora nos envolve nessa rede de vidas perdidas de tal forma que saímos dilacerados de dentro do livro. Ampliamos de alguma forma, no entanto, nossa humanidade, removendo de nosso olhar o preconceito que temos contra os deserdados das cidades, esses seres engolidos por uma injustiça atroz, apagados da história, sem voz, sendo apenas menos que um. Patrícia Melo devolve a eles sua voz, que fala alto dentro do leitor. Menos que um exibe a solidão, o abandono e a marginalidade através de um grito que se faz sentir não só pela existência dos personagens, mas nas entranhas da costura do romance, aberto num vai e vem desesperador, como se fosse as próprias entranhas dos personagens. Os grandes escritores têm essa prodigiosa capacidade de nos mostrar um mundo que jamais veríamos, de nos mostrar o que de horrível a humanidade criou para si, nos tornando participes dessa tragédia a partir do próprio terreno onde ela existe e se manifesta, seja com seu mau cheiro, com sua podridão, com sua solidão, sua miséria, desespero, crime e morte: aqui está ela, esfregada em nossos focinhos perfumados e desumanizados, nas letras de por Menos que um. Jardel Dias Cavalcanti |
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