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Quinta-feira, 8/12/2022 Entre Dois Silêncios, de Adolfo Montejo Navas Ronald Polito "Precedeu o silêncio à Criação. Silêncio era o incriado e nós, os criados, viemos do silêncio [...] De silêncio fomos e ao pó do silêncio voltaremos." (Antonio Di Benedetto, O silencieiro) Diante de um trabalho sobre o silêncio, talvez a postura mais coerente seria fazer “eco” ao seu tema e não dizer nada. Mas é apenas um aparente paradoxo que, para considerar o silêncio, seja preciso se pronunciar. Porque o silêncio demanda, para se instituir, o que lhe é contrário: o som, o ruído, o barulho. É o que se tentará aqui. Em 2021, foi publicado um trabalho de Adolfo Montejo Navas intitulado 66 novos silêncios/ 66 nuevos silêncios e parece que passou despercebido. Trata-se de uma bela edição bilíngue, com costura aparente, projeto gráfico da Dupla Design e tiragem de 150 exemplares assinados pelo autor. O título faz referência a trabalho anterior de Adolfo, 49 silêncios/ 49 silencios, publicado em 2004, também bilíngue e em tiragem de 150 exemplares. Ambas as edições têm o mesmo “conceito” gráfico engenhoso, ou seja, há duas capas, o leitor lê o original em um sentido, vira a edição ao contrário e lê a tradução. Assim, o colofão da edição em espanhol está impresso atrás da capa da tradução e vice-versa. São edições para serem não apenas lidas, mas manipuladas com prazer pelo seu design pouco usual. O longo “silêncio” entre as duas edições foi bastante rentável, serviu para o primeiro trabalho passar por um amadurecimento do qual agora extraímos um silêncio talvez mais gritante, mais incisivo. Naturalmente, sendo uma investigação sobre o silêncio, seria inadequado que o autor ficasse falando muito... Em ambos os volumes, portanto, a forma é a da concisão, do aforismo, da máxima, no que Adolfo é um mestre praticamente sem discípulos num país de poesia e prosa geralmente tagarelas, verborrágicas. A preferência pela forma breve, inclusive, corta toda a trajetória de Adolfo. Para ficarmos em alguns exemplos, cabe citar Limiares/Lindes, que acaba de ser publicado pela Editora Patuá (2022), reunindo um conjunto extenso de aforismos, Da hipocondria (7 Letras, 2005), com 416 sentenças, Na linha do horizonte/Conjuros (7 Letras, 2003), com poemas breves, e Pedras pensadas (Ateliê Editorial, 2002), com 660 aforismos. Na contramão de uma legião de palradores, Adolfo busca dizer o máximo com o mínimo de palavras porque sabe que qualquer excesso de linguagem produz sua entropia ou sua diluição em mero ruído sem significado. Pela própria natureza das formas breves que Adolfo privilegia, estamos diante de uma poesia-prosa do pensamento. Se há imagens inquietantes e sonoridades inesperadas, e há, o alvo é precipuamente a dimensão reflexiva, o objetivo é levar o leitor a pensar, inclusive acerca das condições de seu pensamento. Esses aforismos não pretendem, como tradicionalmente se configuram, ser uma ética, uma moral, mas uma abertura para questionarmos éticas e morais dominantes. Antes que máximas, estamos diante de “máximos”, os limites dos vários absurdos que nos cercam. Assim, se muitas de suas formulações atingem uma dimensão abstrata, geral, outras se dirigem precisamente a condições contemporâneas de nosso cotidiano, nossa vida política e social, enlaçando, desse modo, as duas pontas da linha fundamental que nos organiza: o que escapa ao tempo imediato e o que se afunda na concretude da realidade. “Apesar da proibição,/ o silêncio resiste”; “O invisível, outra/ gestão do silêncio”; “Quando todos fazem barulhos,/ o silêncio está proibido”. Formulações assim dizem bastante sobre o tempo presente, quem faz mais barulho se impõe, quem cala necessariamente não consente, o que é inaudível, imperceptível em meio à algazarra geral. “O tolo é mais amigo/ do ruído que do silêncio”. Essa formulação diz muito sobre o cotidiano em que vivemos. Neste país, quem pede silêncio é apedrejado com berros, nas ruas só se ouvem gritos, carros e motos estridentes, aparelhagens de sons próximos da arrebentação dos tímpanos, qualquer diálogo é sustado por aquele que grita mais alto. Sendo ainda mais explícito, localizado, ou observando a contraface da microfísica: “(Totem) O silêncio de/ Estado monopoliza qualquer/ tipo de silêncio”. A intransparência do poder, sua ocultação planejada, sua invisibilidade constituem as modalidades atualizadas, reconfiguradas do mando de baixo para cima, da suposta impessoalidade das regras do jogo que pressupõe dominantes e dominados como algo natural, vencedores e vencidos como normalidade da história. Nenhum consentimento nesse silêncio da dominação, muito pelo contrário, estratégia feroz de quem supostamente não deve explicações para a implantação do terror, a perpetuação da desigualdade, do monopólio da violência institucionalizada. É preciso alcançar o rendimento do silêncio, sua “economia política”, quando se torna plataforma para a superação de muitos estados de coisa. Que sirva de exemplo a arte. Em mais um paradoxo aparente, a música, que vem nos educando a potencializar o som por sua ausência: “4,33, a prova infalível/ de Jonh cage de que/ o silêncio bebe tudo”; “Músicos que cultuam o silêncio/ sincopado, o aumentam: monk,/ miles, Tristano, shorter, Jarrett,/ lloyd, garbarek, abercrombie,/ towner, stenson, wasilewski...” Isso para “Gente que não conhece a/ música do silêncio, seu tremor”, para “Na música calada do silêncio,/ ouvir suas pausas”. Afinal, é “O silêncio, a partitura mor”; “A voz em off do silêncio não/ deixa de ser uma partitura maior”. Mas não só a música nos instrui para o silêncio, é preciso não esquecer o mestre maior: “Aquele silêncio das estrelinhas/ descoberto por mallarmé [...]” É fundamental ir “Letra a letra até/ o silêncio nascer”, prestar atenção no “Silêncio do branco no branco,/ a página a semear”, “Escrever nas margens do silêncio/ palavras que o ressuscitem”. E, ecoando a epígrafe deste texto, esta constatação básica: “No começo era o silêncio,/ depois chegou o verbo/ e outro silêncio”. Mas não só de arte vivemos, ou melhor, há um fosso intransponível entre vida e arte, mesmo com todas as tentativas em contrário. Por isso é preciso criar estratégias na própria vida para que ela seja minimamente mais possível, para que ela valha a pena. Entre elas, “Uma lição sonora: escutar/ o que o silêncio tem a dizer”. Em outra direção, “O ideal seria recolher os frutos/ silenciosamente, tão atados/ à profundidade do coração”. Porque “Há uma montanha de silêncios/ esperando a volta da tua fé”. Outras tarefas: “Estuda a relação entre/ o silêncio e a paciência,/ a tolerância, os foros internos”. O desejo deve ser purificado: “Abençoado seja o amor/ que se faz silencioso”. Uma vez atingido, “Como se fosse um pão,/ aquele silêncio era repartido/ em partes iguais”. Isso para chegarmos à grande “Conquista: ter um silêncio/ feito à medida”. E, assim, “Em homenagem ao silêncio,/ reza sem palavras”; “Fecha os olhos,/ teu silêncio o agradece”. Tudo em vista a realizar a maior tarefa: “Cada qual tem um silêncio/ próprio para construir.” As dificuldades são enormes, acachapantes, sobretudo desanimadoras, porque o barulho ensandecido do mundo é maior e mais poderoso que um iceberg. Gritar é fácil, raro é abster-se de dizer o que realmente não importa ser dito. Afinal, difícil é saber ouvir, particularmente o próprio silêncio, lugar do espanto, da dúvida, mas também do encontro mudo, motor para outra forma de vida. Para ir além Ronald Polito |
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