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Sexta-feira, 20/1/2023
As turbulentas memórias de Mark Lanegan
Luís Fernando Amâncio

Certa vez, Kurt Cobain disse que Mark Lanegan possuía a melhor voz de Seattle. Ainda que a avaliação seja bastante pessoal – Cobain era amigo íntimo de Lanegan – não é uma afirmação descabida. O vocalista do Screaming Trees possuía um timbre vocal único, transitando por melodias graves com muita segurança. Se não era a melhor – como definir isso? – foi, sem dúvidas, um dos melhores cantores de sua geração.

Conhecido por ser o vocalista do Screaming Trees, Lanegan lançou 12 álbuns solo, integrou projetos e parcerias diversas, tendo inclusive sólida colaboração com o Queens of the Stone Age.



Além do trabalho musical, ele também se arriscou na escrita. Foram cinco livros publicados, três de poesias e dois autobiográficos. Destes, Sing Backwards and Weep: Memórias (2020) foi lançado no Brasil pela editora Terreno Estranho, em 2021. É sobre ele que falarei adiante.

A obra segue o clássico modelo biográfico. Em ordem cronológica, Mark Lanegan revira suas experiências, algumas bastante traumáticas. Por exemplo, a infância e a adolescência em um lar disfuncional. Filho de pai alcoólatra e mãe abusiva, ele cedo se envolveu com o consumo de drogas e em atos de delinquência.


A sua relação com o Screaming Trees também é turbulenta. É graças ao grupo que ele deixa Ellensburg, cidade pequena e rural do estado de Washington, e vai viver em Seattle. Porém, a convivência com Gary Lee Cornner, guitarrista e principal compositor, é de animosidade. No livro, Mark renega parte da discografia da banda e declara ter participado do processo criativo apenas dos três últimos álbuns.

Também há frustração com a trajetória do Screaming Trees. Apesar de ter alcançado algum destaque no cenário independente antes de outras bandas da região, o grupo jamais alcançou o sucesso comercial. Conseguiu um hit, a canção “Nearly Lost You”, do álbum Sweet Oblivion, de 1992. Bem diferente de outras bandas rotuladas como grunge, que foram tendência nas paradas de rock no princípio dos anos 1990.



Os bastidores do Screaming Trees e da cena grunge dominam a maioria dos capítulos de Sing Backwards and Weep. Há relatos sobre turnês, participações televisivas e a relação com outros músicos – por exemplo, a amizade com Layne Staley e os conflitos com Liam Gallager. A dependência química assume protagonismo em sua vida na medida em que o Screaming Trees não estoura.

Talvez seja a parte mais impressionante de sua biografia: o vocalista sobreviver ao vício após uma imersão radical. Para manter o consumo de heroína e crack, sobretudo, Lanegan se envolve com o tráfico, assumindo posição semelhante ao que chamamos de “aviãozinho”. No fim dos anos 1990, após o Screaming Trees ter as atividades encerradas na prática, ele chega ao ponto mais crítico: sem casa, morando nas ruas, sendo procurado pela polícia e por um traficante de quem roubou drogas.

Conhecer um pouco mais sobre esse personagem, que nos deixou em 2022, é muito curioso. É uma forma de compreender melhor o que foi a cena musical de Seattle nas décadas de 1980 e 1990, tendo a dimensão do quão avassaladora foi a epidemia de uso de heroína no noroeste dos Estados Unidos.

O texto, em si, é bastante cru e direto. Lanegan, afinal de contas, é um excelente contador de histórias. Os capítulos sobre suas crises de abstinência e a busca por heroína em terreno hostil são verdadeiras epopeias. Sem perceber, nos pegamos torcendo para que o narrador consiga seu “pico” salvador de heroína, mesmo sabendo o quão terrível são as consequências.

E, após a leitura, é inevitável querer conhecer melhor a obra musical de Mark Lanegan. O que recomendo de forma veemente. A impressão é que, mesmo dentro do rock alternativo, sua música merecia maior destaque. Poucos compuseram canções lúgubres de forma tão brilhante.



* Após a finalização desse texto, soube que Van Conner, baixista e cofundador do Screaming Trees, faleceu no último dia 16 de janeiro. Mais um motivo para quem sobreviveu a essa leitura ouvir a banda.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 20/1/2023

 

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