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Terça-feira, 14/3/2023 Casa de bonecas, de Ibsen Renato Alessandro dos Santos Um fundo de sombra contra o brilho de nossa felicidade Helmer trata Nora como se ela fosse um brinquedo, uma boneca. Nora, como uma mulher secular, mostra-se ajustada ao seu papel e, por isso, de nada reclama. Estamos no século XIX, e, na Noruega, Henrik Ibsen acaba de publicar, em 1879, Et Dukkehjem (Casa de bonecas), drama em três atos. Você não precisa saber que essa peça já tem 144 anos, mas precisa ter em mente que, como Nora, há milhares de pessoas por aí, e não apenas mulheres, mas toda espécie de gente que, sem ter consciência, age como se o mundo fosse o de outrora, quando maridos e esposas passavam incólumes por um casamento de fachada, onde o ambiente era guarnecido daquilo que não era dito, exposto, postado em palavras; isto é: quando a vida tinha mais de silêncio do que daquele rugido que os segundos, quando bem empregados, trazem. Se eu fosse mulher, daria a mim mesma esse livro, e, consternada, o leria, para ver essa outra mulher, Nora, viver seu sonho de dona-de-casa-classe-média-mãe-de-três-filhos-casada-com-um-homem-bem-sucedido... A princípio, ficaria incomodada com aquele sujeito que só sabe tratar a esposa no diminutivo: mulherzinha, avezinha canora... Depois, ficaria ainda mais chateada, ao notar que Nora pouco se importa com isso ― quando o importante, para ela, é manter o equilíbrio do seu lar e fazer o seu homem feliz. Oras, seu homem feliz que vá para a... Perdão, leitora zelosa da língua mátria. Mas é que, em 2023, ver uma mulher como Nora se deixando tratar como uma bonequinha com a qual seu marido brinca, enquanto a casinha brilha em ordem, é algo muito lamentável mesmo ― e você, caso venha a ler ou ver essa peça, há de concordar, não é empoderada leitora do século XXI? (Atenção: O resenhista acaba por gostar de se sentir mulher e, por isso, continua o texto nesse gênero...) Mas, como acontece também em Moby Dick, o que Casa de bonecas reserva de melhor, a despeito de os dois primeiros atos estarem repletos de excelente dramaturgia, está no clímax, quando o céu torna-se plúmbeo, e os mundos colidem, e Nora-Inês, em uma-selfie-carão, renasce Fênix-Félix! E o que isso significa? Significa catarse, rebranding e, antes tarde do que nunca, hora de cair em pé, feito uma gata parda, como nós duas, leitora. É o que Nora faz: cai em pé, chutando Helmer-O-Balde, mas também o casamento, a fragilidade e o véu diáfano que só lhe permitia a visão do beco. É nessa hora que Nora deixa todas as leitoras-mulheres de Casa de bonecas, que já se sentiram oprimidas, silentes, menosprezadas senhoras, tornarem-se felizes, porque Nora vai passar, e ela vai passar por cima de seu marido idiota, de sua vida de aparências, de seu papel de coadjuvante acovardada, e, como protagonista, finalmente, de si, vai ser dona, pois será capaz de deliberar sobre si mesma, independente, sem qualquer influência de qualquer outra pessoa (o pai já morto, o marido controlador, a sociedade patriarcal), e Nora, então, vai seguir adiante, como todas nós deveríamos fazer não vez ou outra mas sempre; isto é, sempre que a vida tocar um solo de teremim irresistível, anunciando o chamado ao qual você atende embevecida e resoluta, leitora do inferno renascida. Em tempo: não por acaso, a mãe de BoJack Horseman (que não se chama Nora, mas Beatrice) vira e mexe lembra de Ibsen. Conhece essa série, leitora serial? Puxa, que bom! Então, você sabe que essa é só mais uma das tantas referências que os roteiristas, para chamar a nossa atenção, como um colar de arame farpado, põem ao redor do pescoço da gente. Renato Alessandro dos Santos |
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