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Quarta-feira, 5/4/2023
Kafka: esse estranho
Ronald Polito

A publicação de Kafka: os anos decisivos, de Reiner Stach (Editora Todavia, 2022, 656 p.), é um dos grandes lançamentos editoriais do ano passado. O autor, considerado o mais importante biógrafo de Kafka, produziu três volumes cobrindo sua breve vida. A decisão da Editora Todavia de publicar o volume do meio da trilogia, relativo ao período de 1910 a 1915, parece-me acertada porque nele se localizam os momentos mais definidores do projeto literário de Kafka. A rigor, são 600 páginas principalmente em torno de 1911 a 1914.

São mesmo anos “decisivos”. Neles Kafka encontra seu caminho e escreve alguns dos textos mais influentes da literatura contemporânea: O veredito, A metamorfose, O desaparecido ou América, O processo e Na colônia penal. É também nesses anos que ele se envolverá com a questão judaica, se aproxima do mundo editorial e conhecerá Felice Bauer, com quem quase se casou.

Mas o gênero “biografia” é ingrato, como o próprio Stach nos adverte na Introdução ao livro, porque toda biografia imerge no problema insolúvel das relações entre vida e obra. Considerando o “caso Kafka”, o impacto de sua obra, é natural que nos interessemos por sua vida e tentemos estabelecer relações entre ela e seus textos. No entanto, isso nos conduz a algumas surpresas: nada de significativo aconteceu na vida de Kafka (quando então nosso voyeurismo teria que se justificar); por outro lado, os inumeráveis laços que podem ser estabelecidos entre fatos que viveu e elementos de seus textos podem apenas gerar constatações, sem que os próprios textos se tornem menos opacos. Como exemplo, lembremos que o inseto de A metamorfose é removido, no final, por uma vassoura, o mesmo objeto que, na mesma época, Kafka cita em seu diário falando sobre si próprio. Mas, e daí?

Há uma passagem de Stach que torna clara a questão: “A curiosidade que nos leva a nos perguntar de onde ele tirou isso é totalmente legítima, mas tudo o que essa pergunta pode proporcionar são tomografias do cérebro do autor. Essa pergunta não nos ajuda a responder por que ou com que finalidade ele escreveu esses textos. Nem O processo nem O desaparecido são romances autobiográficos, e enquanto não levarmos em conta a inaudita capacidade de Kafka de transformar fatos em símbolos que prescindem de sua origem concreta, estaremos cegos para essas obras” (p. 535).


Desenho de Kafka

Dos textos de Kafka já foi dito “tudo”. São incontáveis as interpretações e elas acompanham, inclusive, as várias guinadas no campo da teoria e da crítica literária do século XX, pagando pedágio muito mais a essas teorias do que aos próprios textos do autor. Uma investigação minuciosa deveria ser feita nesse sentido. E é também como Stach comenta: nessa vasta bibliografia, há “pesquisas que parecem jogos autistas: difícil imaginar um possível destinatário” (p. 15).

Se, em meados dos anos 1980, a fortuna crítica de Kafka já somava cerca de 15 mil títulos, podemos calcular, passadas algumas décadas, o número atual. No Brasil, contudo, a bibliografia sobre Kafka é exígua, alcança com favor duas dezenas de livros, e boa parte dos mais importantes trabalhos ainda não foi traduzida. Entre eles, chega a ser inacreditável que os livros de Max Brod sobre Kafka, fontes fundamentais, mesmo que equivocadas em vários pontos, não circulem entre nós.

Em outra direção, o fato de a obra do autor gerar tantos entendimentos, não raro opostos, deveria ser um alerta de que esses caminhos são possíveis, mas insuficientes. Georges Bataille sintetiza o ponto: “O mais vão decerto é atribuir um sentido aos escritos propriamente literários, em que frequentemente se viu o que não há, em que se viu, no melhor dos casos, aquilo que, uma vez esboçado, esquivava-se até à mais tímida afirmação” (A literatura e o mal). Como se Kafka, avant la lettre, nos situasse em um campo “contra a interpretação”. Sobre isso, Deleuze e Guattari já nos deram algum esclarecimento (ver o livro Kafka: por uma literatura menor). Disso resulta que, do emaranhado de significados atribuídos aos textos do autor, saímos perplexos, insatisfeitos com as respostas formuladas, quando então talvez adquiramos a consciência de que o melhor a extrair de suas obras são problemas, aporias, paradoxos.

Na contramão de biografias romanceadas, que criam pontes entre momentos da vida de um autor que não existiram na realidade, o projeto de Stach é claro: ele “não pretende preencher contornos vazios: todos os detalhes, incluindo os eventos descritos, são documentados: nada é inventado” (p. 23). Com esse cuidado, Stach consegue demolir, em algumas passagens, formulações de outros importantes biógrafos, como Ernst Pawel (ver o livro Uma biografia de Franz Kafka), indicando que não há base documental para suas afirmações.

É muito salutar, portanto, a orientação de Stach. Por outro lado, para criar algum fio narrativo típico de biografias, não da vida, sempre fatalmente fragmentária, muitas vezes desconexa, não unificável, sem télos evidente ou mesmo oculto, o autor tem de lançar mão de centenas de condicionais: “parece que”, “talvez pensasse”, “é possível”, “caso tivesse tido”, “deve ter sofrido” etc. A maioria dessas ocorrências é bem plausível, algumas me parecem discutíveis, outras talvez se exacerbem em atos imaginários. Mas é o preço a pagar pela tentativa de dar coerência ao que, grosso modo, carece de sentido. É também o limite típico das leituras hermenêuticas, objetivo confesso de Stach, sem que, contudo, em nenhum momento ele deixe claro o que entende por hermenêutica.


Autorretrato de Kafka

Tendo em conta esses anos da vida de Kafka, uma questão que me parece central é sua relação com Felice Bauer. É dela, inclusive, que emergem pontes possíveis, ainda que frágeis, para nos aproximarmos de alguns textos, como O veredito e O processo, o que já foi esquadrinhado por diversos autores. Infelizmente, como sabemos, Kafka destruiu a correspondência de Felice para ele, ainda que nas cartas do autor possamos encontrar eventualmente a voz de Felice em alguns pontos.

As cartas de Kafka para Felice são tão perturbadoras que podemos, sem exagero, afirmar que expõem uma personalidade monstruosa. Foi o que levou Elias Canetti a escrever Um outro processo, até onde sei, a leitura mais aguda desse material e com conclusões aterradoras. Tendo em conta as diversos absurdos a que Kafka submete Felice, só podemos imaginá-la como alguém tão complexo e disparatado quanto ele. Não por acaso, em seu diário, ele anotará que Felice era “a pessoa mais estranha” que ele já havia conhecido (Stach, p. 570), excetuando-se, talvez pudéssemos ou devêssemos complementar, ele próprio.

Por certo, o maior absurdo ou inacreditável, e isso se conecta com o problema do celibato em Kafka (o que ilumina sua admiração por outros grandes autores celibatários e esclarece sua imensa dificuldade em articular amor e sexo), seja o fato de Kafka, não apenas se dirigindo a Felice, mas ao próprio pai dela, enumerar uma lista extensa de motivos para demonstrar que o casamento é impossível. Isso desborda o limite da razoabilidade. E Felice ter admitido tais argumentos de Kafka diz muito também sobre ela e seus projetos de vida.

Uma outra direção importante seria avaliarmos o caráter premonitório das ruínas textuais que Kafka nos legou. São incontáveis os comentadores que viram em seus textos a antecipação dos traços mais aterradores do mundo contemporâneo, daí o adjetivo “kafkiano” para nos referirmos aos totalitarismos do século XX, à feições mais desumanas das sociedades controladas por mecanismos impalpáveis, à falta de sentido em que nossa vida submergiu. Essa atribuição causal, contudo, não se sustenta empiricamente, ela diz muito sobre nós, não sobre os textos de Kafka, sendo difícil, senão impossível, demonstrar que ele teria “antecipado” a realidade atual. Isso problematiza, inclusive, a moeda corrente de que a arte e a literatura são capazes de tornar visível o futuro.

Vai ser difícil superar o trabalho de Stach, fruto de décadas de dedicação a Kafka, mas não impossível. Fontes podem ser encontradas (há papéis de Kafka que ainda não foram localizados), os arquivos de Max Brod podem se tornar acessíveis, outro olhar, com perspectiva diversa, pode iluminar o que ainda ninguém viu. O que se espera é que os outros dois volumes de Stach sejam traduzidos, o que seria uma justa homenagem agora que nos aproximamos dos cem anos da morte de Kafka. E, com relação aos próprios textos de Kafka, é urgente, no mínimo, que sejam feitas novas traduções das cartas a Felice Bauer, das cartas a Milena e de sua correspondência completa, até hoje não traduzida.


Nota do Editor
Leia também Kafka lendo/sobre Goethe, Franz Kafka a Max Brod, Kafka e as narrativas, Franz Kafka, por Louis Begley, The City of K., Cartas de Kafka a Felice Bauer, por Elias Canetti e Modesto Carone (1937-2019).

Ronald Polito
Juiz de Fora, 5/4/2023

 

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