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Terça-feira, 23/5/2023 Rabhia: 1 romance policial moçambicano Renato Alessandro dos Santos Em busca de novas e novos autores das literaturas africanas de grafia portuguesa, retiro da estante Rabhia, de Lucílio Manjate, livro recém-chegado aqui e que, posto ali, mal havia tido tempo de se adaptar ao ambiente, tipo água que se molda ao jarro, e já foi para outras cercanias. A edição é brasileira, da Kapulana, de 2022, embora o lançamento do livro seja de 2017, com uma primeira edição portuguesa, já esgotada. Não conhecia Lucílio, o que me encorajou a ler sua orelha; ou melhor, a orelha do romance: “escritor moçambicano... formado em linguística e literatura... e filosofia... professor de literatura na Universidade Eduardo Mondlane... tem conexão com a cena cultural brasileira... presença em feiras literárias... autor de vasta obra de ficção e de não ficção”. Sê bem-vindo, Lucílio Manjate! O autor é novo, aos 41, pois hoje, mesmo quando se tem 30, ainda se é adolescente! Lucílio nasceu em 1981. Pensando assim, eu, que nasci em 1972, também estou na primeira dentição? Bem, citando Renato Russo, “meu joelho dói”, e imagino que Lucílio não tenha problemas assim. Ainda. E este romance policial, Rabhia? 1 crime + pistas falsas + 1 investigador aprendiz + duas ou 3 prostitutas + mistério + ardis detetivescos + ciência forense = Rabhia. No início, há um (certo) exagero no (recorrente) uso dos adjetivos, fugindo à (fulgurante) regra de concisão na (boa) escrita de ficção; ou seja, (o fabuloso) Graciliano Ramos iria ficar (bastante) rabugento ao ler as (acolhedoras) (primeiras) páginas do (pouco volumoso) livro, mas nada que um dedinho de uma (admirável) cachaça (entorpecedora) não viesse a resolver as (graciosas) coisas... Mais um pouco de leitura e – palmas! – figuram velhos mestres desprendendo-se da coxia onde as palavras descansam: vê a fusão entre 3ª e 1ª pessoas narrativas, tão ao gosto de Saramago, com diálogos sem identificação excessiva do narrador; repare no hibridismo de línguas, como o crossover do xindau com a língua portuguesa, algo tão ao gosto de Luandino Vieira; viu os substantivos pospostos aos adjetivos, já patente àquela escola onde Guimarães Rosa e Mia Couto ocupam um destacado lugar? Não deixe de perceber, também, adamantina leitora e pressurizado leitor, a presença da onomástica, alegorizando as personagens: Alívio no lugar de Abílio; José Todo Patrimônio, Fulia, Ti Castigo; o chaminé Ambrósio Lobato, também chamado de Ambrósio Tabaco; Bernardo Bastante Sozinho... Há figuras de linguagem bem empregadas: na página 66, “cadeira cansada” é uma hipálage ou uma personificação, leitora ou leitor? Os dois? Nos ajude. Há a metonímia por trás do rádio Xirico, nome de pássaro, na página 107, gorjeando Vinicius de Moraes... É imediata no leitor a percepção de que Manjate sabe tocar saxofone e arriscar uns passinhos de dança ao mesmo tempo, dando às palavras aquelas "demãos" que solamente tropos ou figuras são capazes de oferecer. É assim que o leitor vai se apercebendo de que é preciso avançar com cautela, pois, sem o fio, toda meada perde-se, correndo-se o risco de se ficar sem combustível, antes que a corrida acabe. Pensando em boa literatura, isso é um alívio, pois tal procedimento – nesse caso – aponta para um texto onde as palavras são muito bem enfeixadas por esse recém-chegado prestidigitador literário de Maputo ao mercado editorial brasileiro. Tomada tal precaução, isto é, ter o leitor sua cabeça no lugar, calibrada e ajustada ao estilo de Manjate, fica sintonizado o dial na estação que conta uma história em que a morte de uma garota é o crime oferecido: a cega Rabhia é encontrada sem vida na rua; sim, a prostituta mais célebre de Maputo acaba de ser assassinada, e o infame responsável não esperou a polícia chegar, para contar o que houve! Risos. Os “risos” vêm do próprio autor dessa boutade, pois quem se lamenta desse fato é o comissário encarregado do caso, que, ao lado do narrador-estagiário, cujo nome só saberemos perto do fim da leitura, ganha a atenção dos leitores. Vai assim o leitor atravessando o livro, feito os gumes de uma faca desfiando o arrebol macio composto de gordura, veias e músculos de uma vítima: o verbo e a carne. Lá pelo capítulo 8 – e os capítulos são bem curtos, como o romance todo, que só tem 127 páginas – lá pelo capítulo 8, fisgados já estamos como leitores, e, daí em diante, é seguir lendo um assinalado romance, para se entender a lusofonia que abrange a heterogênea comunidade de falantes que, em vários continentes, e debaixo desse sol flamejante, ainda se surpreende com peculiares significantes que, mal interpretados, resultam em significados que dão o que falar, cá, nesta terra que tem (ainda) palmeiras e sabiás aos montes. “(...) e mostraram os cus aos homens” ― é o que lemos na página 49. Estranhamento & literatura têm tudo a ver, e por isso, à exceção de risinhos juvenis de primeira viagem, semanticamente, nada fica de embaraçoso, no fundo, nesse e em outros trechos que, feito latim em pó, evocam uso tão largo e audacioso dessa língua espantosa esparramada pelo globo. Ah, por fim, como os amoráveis leitora & leitor devem ter percebido, estas frustradas linhas são mais outra tentativa em busca de se armar resenhas esquisitas, sem serventia alguma, e, por isso, vale mencionar que sempre é possível encontrar sugestões de nomes de bandas em romances e, neste Manjate, não poderia ser diferente: Amargarida. Não é um bom nome para uma banda indie? Renato Alessandro dos Santos |
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