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Terça-feira, 28/11/2023
Tito Leite atravessa o deserto com poesia
Jardel Dias Cavalcanti


Todo grande místico atravessou o deserto para purificar-se do mal. No caso do poeta, a coisa é diferente. O seu deserto (pecado?) é a vida ― e seus desvarios ― e o desejo de transformá-la em linguagem. Memento, homo, quia pulvis est in pulverem reverteris (Lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás). Foi o que disse Deus a Adão (não em latim) depois do pecado original. O “Memento” de Tito, poema que aparece na quarta capa de seu livro A palavra em seu deserto, publicado pela Editora Clóe, aponta para o vir a ser, “O pássaro nasce e já é voo”, onde o eterno deslocamento ou des-territorialização da existência torna-se a matéria prima de sua poesia.

O livro A palavra em seu deserto é dividido em três partes, intituladas respectivamente: “A loucura é bilíngue”; “A lua guarda um segredo violáceo”; “Agora é o já e o ainda não”. Apesar da divisão do livro em três seções, não fica muito clara a sua razão, pois parece que o interesse central do poeta consiste sempre em transmutar suas experiências existenciais ou espirituais, ou suas dúvidas e descaminhos, numa construção poética sempre em crise.

Explico melhor. Vejamos o poema “O outro”, por exemplo. Seu andamento apresenta o drama rimbaudiano da persona do outro como sendo o si mesmo: “Eu sou o outro/ que me falta”. A questão é que o outro vive a condição trágica, ou seja, não aceita seu destino ― pois “são tantas coisas inacabadas/ que tiram meu sono”. E é essa condição que o faz cantar (poetizar): “Eu canto a ovelha/ e o lobo,/ a serpente que engole/ a própria cauda (...)// Eu canto o limo e o mar aberto, (...)// Eu canto o estrondo/ da trombeta (...) e o monge que titubeia/ entre o louco e o santo. (...)”.

A falta que constitui o sujeito torna-se o Outro do poeta, que o faz titubear entre a santidade e a loucura, entre a vida e o retiro do santo. O “sei voar e tenho as fibras tensas (...) enganando entre a dor e o prazer (...) mas meu coração de poeta projeta-me em tal solidão”, cantada por Caetano Veloso em sua bela canção "Peter Gast". Essa tensão criadora que existe entre a vida e a arte move o poeta Tito Leite.

A crise do Ser expõe-se sempre como crise da poesia e como crise do estar no mundo. Caso do poema “Secos & molhados”: “Ontem fiz um poema-onda:/ carregado por todos os ventos/ que me são conflitantes”. E já que o poema é onda, ele se forma e se esbate na areia num eterno retorno de se formar e se de(s)formar. O poeta só rompe esse eterno conflito deitando-se “numa cama/ de metáforas”. É sua reação diante da paralisia da existência nessa eterna roda sísifica que é a vida. Tornar-se poeta é retomar a rédea, sem no entanto solucionar o problema da vida. Resta-lhe a linguagem poética como prancha para surfar sobre essas ondas.

O poema “Porvir” dá a medida do mergulho nas águas salgadas ― a crise é o sal da vida: “quero sentir/ a cada momento/ o poema/ que deriva // do sal das águas/ que banham/ a minha alma”.

É interessante notar que a pausa que antecede “do sal das águas” é justamente de onde o poema “deriva” (ou estaria à deriva?). Ou seja, um desvio de rota por ventos ou correntes marítimas. Os vendavais da vida poderiam ser também a chave (ou imagem) para entender o que deixa o poeta à deriva.

Não causa espanto o fato de o poeta estar na vida e colocar-se, ao mesmo tempo, contra ela. A indomesticável liberdade da imaginação é sua alma. O poema “Natura”, assim como outros criados por Tito Leite, exemplificam essa tensão. Vamos a ele.

NATURA
Cavalos selvagens
em fuga do que é domesticável,

do que se afoga na finura
das moiras dos destinos.

As patas sangram.
Respirar sem ferraduras,

livre do peso de todo
animal que calcula.

Um dos poemas interessantes de Tito Leite é “Hausto”, palavra que significa aspiração longa, uma golada de ar, pode-se dizer. No poema, a condição de anjo caído se dá em razão da impossibilidade de constituição de uma relação dentro de alguma tribo, no caso específico a mais cosmopolita das cidades brasileiras, São Paulo.

Uma espécie de “Albatroz”, de Baudelaire, caído no coração da urbe. O “já não bebemos// da mesma vinha e nem/ dividimos o mesmo pão” instaura a tristeza no coração do poeta. Daí sua condição de anjo nocauteado que se estende a todos, pois o plural está presente em “como se fôssemos anjos/ nocauteados (...)”.

Ao cortar as relações, “cada nome [se torna] uma miragem”. A cidade fantasmagórica que se tornou São Paulo, como a Paris do poema “A uma passante”, de Baudelaire, tão bem comentado por Walter Benjamin, se faz presente em “Hausto”, condição das grandes cidades que nos aproxima e nos afasta ao mesmo tempo das pessoas, criando essa solidão cantada por Tito Leite.

E seja na grande cidade ou seja no claustro (lembremos que Tito Leite é monge), a tristeza se impõe, como no poema “Haicai”: “A paz deságua/ em pétalas de solidão:/ chove no claustro.” No fundo é a condição do criador, do poeta, do escritor, do artista enfim estar a um metro do mundo e a cem mil metros de altura dele.

Como na Eneida de Virgílio, a condição de exilado predomina: Litora cum patriae lacrimans portusque relinquo Et campos ubi Troja Fuit. (Deixo lacrimoso as praias da minha pátria, o porto e os campos onde Tróia existiu).

A condição gauche do poeta, indiretamente presente em muitos dos poemas, reafirma-se no verso “Uma pessoa fora do lugar”, do poema “Acaso”. É a partir dessa condição que as metáforas aparecem, para constituir os poemas, essas bugigangas verbo/lexicais criadas por Tito Leite: “Eu guardo bugigangas/ como quem constrói/ um acervo/ de pedras preciosas.” O bem mais precioso, no fim das contas, o poema, enfim existindo, é bem “Imaterial”, joia rara, como essas que Tito Leite criou.


Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 28/11/2023

 

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