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Segunda-feira, 18/12/2023
Os autômatos de Agnaldo Pinho
Ronald Polito

O brinquedo é a primeira iniciação da criança à arte, ou antes é para ela a primeira realização, e, chegada a idade madura, as realizações aperfeiçoadas não darão a seu espírito os mesmos ardores, nem os mesmos entusiasmos, nem a mesma crença. (Charles Baudelaire. Moral do brinquedo.)

Agnaldo Pinho é um artista de muitas faces: pintor, desenhista, gravador, escultor, ator e criador cenotécnico, nos últimos anos vem se dedicando mais intensamente à construção de autômatos. Foi um longo caminho para isso. Nascido em Betim (MG), em 1963, fez bacharelado em artes plásticas com especialização em desenho pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Geris (UFMG).

Tem um extenso currículo de exposições individuais e de participação em exposições coletivas, além de criações cenotécnicas para peças de teatro e espetáculos de dança, cinema e televisão. Em paralelo a suas atividades de criação, fundou a Opa! Cenografia, empresa especializada em eventos e montagens museográficas, que montou grandes exposições de arte em BH, como Marc Chagal, Rodin, De Chirico e Caravaggio.

O interesse por arte, consciente ou não, o acompanha desde a infância. Além de desenhar, pintar e reproduzir histórias em quadrinhos, construía seus próprios brinquedos, carrinhos de rolimã, carrinhos de lata, boizinhos de batata, pipas e estilingues. Perto de sua casa, ele conheceu o Manuel dos Bonecos, um nordestino com origens em Caruaru que tinha uma banquinha na beira da estrada onde vendia os bonecos de barro que fazia. Agnaldo gostava de ver Manuel moldando bonecos e essa foi a primeira influência que recebeu para fazer seus próprios bonecos, quando passou a modelar barro.

Desde criança tinha também fascinação por miniaturas. É ele que nos conta que sua mãe o pegou com um martelo na mão para tirar as pessoinhas e cavalinhos de dentro da tv. Encantava-se com a série de ficção científica com bonecos Thunder Builds que acompanhava na televisão de casa.

Mas esse interesse por brinquedos e bonecos ficou de certa forma adormecido durante anos. Foi só no curso da Belas Artes que lhe aconteceu uma experiência decisiva e que redefiniu suas prioridades artísticas. Numa visita que fez ao Grupo Giramundo, que montava peças de teatro com bonecos, ficou encantado com a magia do que eles faziam e passou a frequentar o ateliê do grupo. Não fez nenhum curso de confecção de bonecos, mas recebeu orientação do grande artista Álvaro Apocalypse e trabalhou lá durante seis anos fazendo bonecos de manipulação.



Anos mais tarde, Agnaldo daria um salto deixando de fazer bonecos manipuláveis para fazer bonecos programáveis: autômatos. Um boneco de manipulação, como o próprio nome esclarece, realiza movimentos orientados pelas mãos que o seguram. Um autômato é diferente: ela executa uma cena predefinida por engrenagens. É também o ponto de encontro de muitos ramos de conhecimento, daí o interesse que desperta para os que querem transcender a ideia de especialização porque une, numa ação programada, ciência, matemática, engenharia mecânica, marcenaria, física e arte (escultura, pintura, objeto).

É milionária e milenar a história dos autômatos e não é o caso, aqui, de abordá-la, a literatura especializada é bem extensa. Desde o mundo antigo o homem tem enorme fascínio pela construção de figuras, humanas ou não, que se movimentem a partir de seu comando. É um jeito de ele fazer as vezes de Deus, que tudo teria criado. A arte de construção de autômatos atingiu o ápice no período moderno e no início da época contemporânea, do final do século XVIII até o princípio do século XX, quando as figuras e mecanismos alcançaram alto grau de perfeição. De algum modo, o interesse pelos autômatos refluiu e só voltou à tona nas últimas décadas.

Podemos pensar que esse renascimento guarda relação com o advento dos robôs, que representam um grau a mais nessa velha pretensão humana em ser seu próprio Deus. É possível conjecturar que o retorno dos autômatos mescle o fascínio pelas formas artísticas do passado com a vontade dos homens de não perderem o contato físico com suas criaturas.

Um autômato e um robô se distinguem bastante, mesmo que guardem as ideias de programação e de movimentos predefinidos como identidade de fundo. Nesse passo, é preciso também não perder de vista a analogia que pode ser traçada entre autômatos, robôs e computação. Com efeito, o fato de um autômato ou um robô conter uma programação para que execute sua cena guarda relações evidentes com a lógica computacional. O autômato, portanto, ocupa um lugar de honra na pré-história de nossas máquinas programadas.

Costuma-se pensar que a diferença entre os dois resultaria de suas especificidades funcionais. Um robô teria uma função industrial e um autômato teria uma função artística, seria uma escultura animada, um objeto mágico capaz de executar uma cena. Esse modo de refletir sobre suas naturezas, ainda que faça algum sentido, não me parece dar conta dos papéis que robôs vêm assumindo nos últimos tempos.

Um robô transcende funções industriais ou utilitárias. Basta pensarmos na polêmica instalação Can’t help myself (em tradução livre “Não consigo me ajudar”), dos artistas chineses Sun Yuan e Peng Yu, em que um robô, girando e girando seu braço em torno de si, tenta desesperadamente recolher seu próprio “sangue”, para nos darmos conta de que estão abertos os caminhos para robôs adquirirem o estatuto de obras de arte. E não é impossível que, oportunamente, artistas façam robôs e autômatos interagirem, quando um robô poderá comandar um autômato e vice-versa, o que será um belo desdobramento, uma intrigante fusão de suas potencialidades. Fiquemos, portanto, apenas com as distinções entre mecânica e eletrônica, mesmo que relativas, para caracterizarmos as diferenças entre essas “máquinas” artísticas.

Foi um longo percurso para que Agnaldo Pinho chegasse aos autômatos. Primeiro ele fez bonecos de manipulação, marionetes, fantoches e brinquedos. Foi quando fundou a Traquitana Brinquedos, loja especializada em bonecos e brinquedos artesanais e pedagógicos, que encantou gerações de crianças. Estava aí o primeiro contato com os autômatos, pois muitos brinquedos já trazem traços de programação.

Nos anos 1990, Agnaldo fez um comercial para a Cemig com bonecos numa construção que mexiam por meio de engrenagens predeterminados. Alguns aos mais tarde, construiu também a maquete de um circo com 56 personagens em movimento. Já em 2000, ele foi convidado a fazer o troféu do Anima Mundi, principal festival de animação do Brasil e segundo maior evento internacional da área. Durante 17 anos, criou troféus para o festival sempre com alguma variação em torno de sua forma. O troféu foi idealizado por Keith Newstead, falecido recentemente, que, nas palavras de Agnaldo, foi “um dos maiores construtores de autômatos do mundo. Todo ano eu crio uma versão nova em cima de um mecanismo desenvolvido por ele. Este fato me abriu o universo dos autômatos”.

Mas aprofundando o estudo e o conhecimento sobre os autômatos, foi só em 2015 que ele se deu conta com mais propriedade do universo dos autômatos, seus criadores, galerias, mercado, e passou a se dedicar verticalmente à área. Foi quando fundou a Bonecaria.com (também no Instagram: @agnaldopinho.arte), um ateliê especializado na construção de bonecos em todo tipo de técnica, material e tamanho, que atende a todos os interessados, incluindo o mercado de televisão, teatro e cinema. O ateliê comercializa, preserva, divulga e conserta bonecos, e suas criações são vendidas para todo o Brasil e o exterior. Além disso, Agnaldo eventualmente profere palestras e oferece cursos e oficinas aos curiosos pela arte.

Agnaldo queria bonecos que fossem mais brinquedos que instrumentos de teatro. O mais difícil, segundo ele, é o primeiro passo: “imaginar a cena como um todo”: “o autômato é como se fosse uma peça de teatro, uma cena que acontece numa volta do mecanismo”, com início, meio e fim. Depois da cena imaginada, num segundo momento, é preciso “decupar o movimento de cada personagem”, qual movimento e qual tempo em que ele o faz, o que implica tempos e regulagens diferentes para cada personagem. A terceira etapa é “como criar mecanismos, sistemas de engrenagem que reproduzam aquela cena que eu criei e interpretei quando decupei os movimentos”. “Eu acho que é muito parecido com criar uma cena de teatro”, onde importam a intensidade e a dramaticidade desejadas. Não se pretende um estilo rebuscado em suas peças, que se aproximam muito e criativamente da arte popular do Brasil. Ele tentar simplificar o máximo possível, “ganhando em simplicidade do mecanismo”. E mais que brincadeira e arte, também “é uma coisa de desenvolvimento de raciocínio”.

O universo de seus autômatos é sobretudo lírico, mesmo que possa adotar temas mitológicos ou religiosos, como seu Ícaro decide partir (com um toque dramático), sua sereia e seu São Francisco. Outras figuras lembram tipos populares (um casal apaixonado, outro se desentendendo), animais do mundo da roça (um burro dando coices), pássaros e insetos (um beija-flor e sua flor, um tucano em pleno voo, um pica-pau bicando um tronco, duas borboletas batendo asas enquanto um pássaro tenta comer uma larva), uma flor rodopiando, dois cães disputando linguiças, três gatinhos com seus rabos insinuantes, três porquinhos, uma igreja e casinhas coloniais girando, uma bailarina, um pintor em atividade (quando o autômato se torna metalinguístico), ou apenas movimentos que nos encantam (como o das ondas em torno de Moby Dick e Ahab ou o do gingado de um trenzinho tão mineiro).



Talvez seu trabalho mais impactante seja “Drummond vida em obra” (cujo título já é um achado). Pelas dimensões e pela fineza do projeto. A convite de Pedro Drummond, neto do poeta, Agnaldo construiu uma grande instalação no Memorial Carlos Drummond de Andrade, em Itabira, cidade em que o poeta nasceu. Ela foi aberta em junho de 2022 e é uma exposição permanente. Além do espaço externo ao Memorial, com caricaturas ampliadas de Drummond feitas por ele mesmo, em cinco salas do prédio o visitante refaz os percursos biográfico e bibliográfico do poeta. Em cada uma, um autômato que sintetiza fatos e aspectos proeminentes de sua pessoa e sua poética. É visita obrigatória para os amantes da obra de Drummond. Para além dos autômatos como objetos de arte, Agnaldo construiu um mecanismo de alta qualidade didática e força interativa: a Máquina de calcular música, semelhante a uma máquina de calcular, mas cujo mecanismo também lembra o sistema de funcionamento de cilindros numa caixinha de música. A máquina é capaz de criar melodias mudando o posicionamento de pinos em um cilindro movido a manivela. Em suas palavras: “como o autômato é uma peça que tem um ritmo predeterminado, ele funciona bem como instrumento didático para a musicalização”. “Você tem, além do ritmo e do compasso, a percepção da tonalidade da nota musical e da possibilidade de compor uma música”. Assim qualquer um pode se arriscar a se tornar compositor. Nessa mesma linha, Agnaldo criou depois o Rádio para conversar com passarinho, que pode ser visto no Instagram.

Por fim, e retomando as relações que indiquei entre autômatos, programação e computadores, é sensacional uma “instalação” que Agnaldo criou recentemente, junto com Maurício Jabur, o Mau, um maker paulista do universo da eletrônica: o GIFísico (um trocadilho com gif), que vira o mundo de cabeça para baixo e dá um nó em nossas coordenadas. Com muito humor e ironia, ele construiu um mecanismo que comanda um computador e, através do mecanismo ele controla o movimento do vídeo, podendo acelerar, parar, ir para frente ou para trás com a imagem, numa completa inversão de expectativas e, simultaneamente, numa fusão de tecnologias premonitória do que ainda vamos ver no mundo da arte. Evoé, Agnaldo!

P.S.: disponibilizei aqui alguns vídeos dos autômatos que ele criou. Quem quiser conhecer muitos outros, incluindo tutoriais de como construí-los, é só digitar “Agnaldo Pinho” (entre aspas) no Youtube para ter acesso a dezenas de vídeos de seu trabalho.

Ronald Polito
Juiz de Fora, 18/12/2023

 

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