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Sexta-feira, 22/12/2023
Soco no saco
Luís Fernando Amâncio

Minha filha não quer ter irmãos. Em seus quatro anos de existência, ela não está certa se gosta ou não de suco de maçã ou das aulas de natação. Mas sobre dividir o centro das atenções com um pequeno ser que baba e usa fraldas, ela está bem decidida.

Não são apenas afirmações. A menina tem se empenhado silenciosamente em me deixar estéril. A cada semana, às vezes em dias consecutivos, ela me desfere golpes nas “partes baixas”. Socos, chutes, arremesso de brinquedos, cabeçadas… um arsenal variado de “maldades”.


Claro, estou falando de “acidentes”. Afinal, quando confrontada, a meliante apresenta uma expressão fofa e usa mão do artigo incontestável da infância: “foi sem querer”.

Passadores de pano dirão que é isso, mesmo. Coisa de criança, que se move pelo mundo com a intensidade de uma explosão nuclear, como se tudo fosse urgente e não houvesse amanhã.

Mas quem apanha, sente. E como sente.

O curioso é que, quando um homem fala que levou uma pancada no saco, as pessoas esboçam sorrisos. É automático. Dizem “que dó”, mas seus olhos gargalham. É possível sentir suas mentes delirando: “hahaha, um soco no saco”.

O que me faz refletir. O humor bocó, pastelão, que intoxicou nossa formação, pode ter contribuído para isso. Além de gordofobia, racismo, homofobia, misoginia… nossas comédias nos deixaram insensíveis a essa dor essencialmente masculina.

Quantos filmes não usaram esse alívio cômico? O vilão corpulento encurrala o jovem herói, mas é surpreendido por um pontapé no saco e se retorce bestialmente. Para o cinema, é o tipo de gag que, no mundo real, chamamos de “piada de tiozão”.

Dores não são engraçadas. Ainda mais quando ocorrem numa área de tamanha sensibilidade. É dor daquelas de “dar tela preta” na cabeça. De fazer a gente amaldiçoar a vida, o universo e tudo mais.

E o pior é que eu posso imaginar mulheres lendo esse texto e pensando: ”ah, pronto, agora o macho quer que eu sinta pena dele por ter um saco. O alecrim dourado não aguentaria dez minutos sendo mulher nesse mundo e vem se fazer de coitado”.

Pode ser.

Mas acredito que a dor no saco nos mostra como a masculinidade é construída para esconder as fraquezas do homem. Quando sentimos uma dor bem “nossa”, preferimos tratá-la como uma blague.

E, convenhamos, o escroto é uma fragilidade. Se o pênis é o símbolo da virilidade, de poder, abaixo dele carregamos uma pequena bolsa de vulnerabilidade. É como se o Superman levasse no peito, no lugar do “S”, uma vistosa pedra de kriptonita. “Ei, Lex Luthor, me acerte aqui”. Não faz sentido.

Em resumo: homens são fortes e garotos não choram. Caso sintam dor, serão uma piada. É uma forma de negação das nossas eventuais fraquezas.

Como eu não sou (muito) burro, estou providenciando uma coquilha para quando for brincar com minha filha. Afinal, o prevenido não morreu esterilizado por porradas no saco.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 22/12/2023

 

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