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Segunda-feira, 29/1/2024
Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
Ronald Polito

Jardel Dias Cavalcanti tem desenvolvido uma intensa atividade no campo do ensino, da pesquisa e da criação envolvendo todas as artes.

A entrevista a seguir dispensa uma apresentação biográfica porque nela podemos reconstituir parte de sua trajetória. Penso aqui apenas comentar brevemente uma de suas frentes de trabalho nos últimos anos: a criação da Galileu Edições, com a publicação de vários autores e gêneros literários simultaneamente a seus trabalhos criativos de prosa, poesia e tradução.

Em pouco tempo, Jardel publicou mais de 30 plaquetes com trabalhos de sua autoria. Entre eles, sobressaem traduções de autores e textos pouco conhecidos ou mesmo desconhecidos no Brasil, e que foram localizados a partir de sua aguda curiosidade por tudo o que há no campo das artes.

Cito alguns exemplos, além dos que ele menciona na entrevista: o texto O Ulisses de Joyce, de Stephan Zweig, um apanhado dos Cadernos de Cioran, poemas de Paul Celan, poemas e reflexões sobre a poesia de Henri Michaux, O futuro da música: credo, de John Cage, um texto sobre Picasso de Françoise Gilot, a Carta de um louco, de Guy de Maupassant, A morte e a donzela e outros poemas de Franz Schubert, a letra de música 45 Mercy street, de Anne Sexton etc.

Do erudito ao pop, da lírica à música, do conto ao ensaio sobre arte, é amplo e multifacetado o território em que Jardel Dias Cavalcanti habita. Vamos a ele.

Quando te conheci, há mais de 30 anos, seu interesse preponderante era pela literatura, particularmente francesa. No entanto, sua monografia de bacharelado foi sobre a moral anarquista e suas pós-graduações foram no campo das artes visuais. Como se deram essas guinadas de interesse? Por quê?

Desde os 14 anos, depois de ler Madame Bovary, de Gustave Flaubert, alguns volumes de A comédia humana, de Balzac, e As flores do mal, de Baudelaire, meu interesse pela literatura francesa foi se ampliando.

Pensei até em fazer vestibular para Letras, mas temia que meu prazer de ler literatura fosse afetado pelas obrigações acadêmicas de consumir a literatura que eu não queria ler. Literatura sempre foi o meu maior meio de evasão (“Pelo poder da arte cumprimos nossa marcha,/ Alegres, através da escura Noite da Morte!” (A flauta mágica – Mozart). Então, para não cortar meu barato pela literatura, decidi fazer História – um curso fabuloso.

Na verdade, a área de humanas sempre foi meu interesse como um todo. E fazendo História preservei minha fonte de “prazer desinteressado”, a leitura de romances, contos e poesia.

No curso de História, pretendia fazer o bacharelado em história da arte, mas o professor da disciplina na UFOP não tinha nem mestrado e nem doutorado, estava impossibilitado de me orientar.

Dentro da História, o que me atraía era o movimento anarquista, já bem estudado. No entanto, uma das áreas pouco estudadas era a questão da moral dentro do grupo anarquista no Brasil. E eu encarei o tema, e com esse trabalho me tornei, de fato, historiador, fazendo pesquisa documental na Biblioteca Nacional e no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp e tudo o mais.

No mestrado, a literatura voltou a ser fonte de interesse. E fiz um projeto sobre Baudelaire, influenciado pelas leituras de Walter Benjamin. Mas como a área onde apresentei o projeto era de História da Arte, o professor Jorge Coli me sugeriu trabalhar com artistas próximos a Baudelaire, ou que o poeta teria comentado, daí ter escolhido Courbert e Daumier.


Você estudou Courbet e Daumier no mestrado. Depois disso, no doutorado e no pós-doutoramento, enfocou a arte brasileira dos anos 1960/1970 de cunho político. Como explicar mais essa guinada, sabendo de suas restrições à dita arte engajada?

Exatamente por essa restrição à arte engajada fiz esse doutorado, que, no fim das contas, se revelou ser um grande fracasso teórico. Minha pretensão era tentar explicar o que restaria (ou não) de Arte (com A maiúsculo) em uma obra quando ela se metia a ser ao mesmo tempo arte e crítica política, ou arte engajada, como geralmente é classificada.

O objetivo era tentar provar que o engajamento da arte muitas vezes desconsidera as questões estéticas (estas, sim, sendo iminentemente políticas por aquilo que Alice Milliet chamou de “subversão dos meios”).

Em função da urgência política, boa parte dessas obras acaba datada, só tendo significado no âmbito de um registro histórico específico. E, como disse Cortázar, “Nenhum poema jamais derrubou um ditador”.

Meu ponto teórico central era o ensaio de Adorno “Conferências sobre lírica e sociedade”, que considera que o que é político na arte seria a forma e não o conteúdo da obra. Diz Adorno: “Nada que não esteja nas obras, na própria forma destas, legitima a decisão quanto ao seu conteúdo, o poetizado ele mesmo, representa socialmente”.

Existem, claro, obras que conseguem expandir a pesquisa da forma e ao mesmo tempo denunciar uma situação de degradação da humanidade, como é o caso do quadro Guernica, de Picasso, ou Os desastres da guerra, de Goya, que trata do massacre produzido pela invasão napoleônica na Espanha. Mas nem todo artista é Picasso ou Goya quando se engaja.

Não podemos esquecer que aquilo que existe na arte existe pela arte, e não de outro modo. Enfim, perdi a chance de resolver a questão que me interessava no doutorado: a tensão arte x política.

Seu arco de interesses é muito amplo: todas as artes visuais, prosa, poesia, teatro, música (erudita ou não) etc. Você vê um fio que interliga esses campos?

Passei a minha infância dentro de igrejas mineiras barrocas, onde todas as artes se ligavam: a música do órgão, o texto da bíblia, as esculturas dos santos, a pintura barroca e rococó, o canto coral, a arquitetura.

Há uma ligação secreta entre esses gêneros artísticos na arte barroca (creio que entre todas as artes), numa espécie de fecundação de uma obra por outra. Ou seja, existe uma conexão entre as artes, uma Correspondência das artes, como é o título de um importante livro sobre o tema, escrito por Étienne Souriau.


Nas artes visuais brasileiras de hoje, que autores chamam sua atenção e por quê.

Infelizmente, Tunga faleceu. É o que mais admiro, por sua síntese ousada entre história (esta cravada nos elementos que ele usa – sem nenhum apelo objetivo) e ousadia experimental, que pode se manifestar tanto numa performance como numa instalação. A Galeria Psicoativa, de Tunga, em Inhotim, me perturbou profundamente.

Outro artista que também admiro é Nuno Ramos, um multiartista: compositor, poeta, artista plástico e, além do mais, ensaísta. Creio que pelos mesmos motivos da admiração que tenho pela obra de Tunga. Onde os dois “instalam” suas obras, cria-se uma “perturbação silenciosa” no ambiente.

Evidente que a lista iria adiante. Mas registro aqui o artista abstrato-geométrico, Rubem Valentim, que admiro muito. Em termos de artistas um pouco mais “antigos”, Hélio Oiticica, pela convergência entre sua postura existencial e/ou marginal e pela ampla reflexão teórica sobre seu próprio trabalho – que ele sempre discutiu seriamente.

Tradução e edição se tornaram corriqueiras em seus últimos anos, frutos da Galileu Edições que tem publicado muita coisa interessante. É bom lembrar que, na graduação em História, você fez seus primeiros experimentos editoriais com Mário Alex Rosa. Depois, um longo intervalo. Por que decidiu traduzir e de novo publicar? Como seleciona o que publica? E como escolhe o que traduz?

Não sou o que se pode chamar um tradutor, mas alguém que TENTA traduzir, exercitando assim o conhecimento de outra língua. Outra questão é que, com a tradução, a penetração no poema é bem maior, a tradução sendo uma forma de melhor entender a estrutura do poema, sua alma.

A escolha está sempre relacionada a poetas que gosto de ler ou, em alguns casos, de poetas dos quais não encontro tradução ou que despertam minha curiosidade e que acabo descobrindo por acaso.

Por exemplo, os poemas pop alemães que traduzi são inéditos no Brasil; já pela curiosidade, sou leitor dos romances de Michel Houellebecq e ao descobrir que ele escrevia poesia, traduzi uma série de poemas dele. Também traduzi poemas do pintor Egon Schiele, outra raridade.

Outro exemplo, traduzi alguns poemas do jovem Karl Marx, a título também de curiosidade. Se minhas traduções têm valor não sei dizer, mas bons tradutores saberão avalia-las.


Aproximadamente nas duas últimas décadas, você acompanhou bastante a área de poesia no Brasil escrevendo muitas resenhas que divulgou no Digestivo Cultural. Como você avalia o campo poético nesse período? Ele é “homogêneo” ou há contrastes, rupturas?

Sim, andei resenhando por mais de uma década muitos livros de poesia contemporânea no Digestivo.

Tem todo tipo de gato nesse saco. Sou um crítico alternativo, sem formação em literatura, portanto, sou meio instintivo ao falar de poesia. Mas nunca deixei de ler crítica literária, que, por sinal, é bem superior à crítica de artes visuais no Brasil.

Não existe homogeneidade, dentro de tudo o que li, ao contrário, cada poeta segue seu caminho com pares ou sem eles. Você tem alguns poetas que seguem a linha mais cerebral de Valéry, você tem os poetas de natureza sentimental (cantando seus desvarios amorosos), você tem os poetas minimalistas (conceituais?), como tem aqueles ligados a algo parecido com Leminski/beatniks, meio marginais.

Existem também alguns que seguem a linhagem concreta, experimentando a relação entre a palavra, o som e a imagem (caso de Arnaldo Antunes, por exemplo). Ah, existem os passadistas, tradicionalistas, em geral fracos. E, agora, com a luta das minorias, poetas com forte apelo pelas temáticas feministas, de raça e gênero.

Vejo também que alguns poetas que acompanhei, lendo todos os seus livros, começaram bem e foram perdendo a força ao longo dos anos, perdendo o rumo. Há um fato novo que é a proliferação de péssimos poetas publicando ansiosamente seus livros, em busca de reconhecimento fácil, de glória, de prêmios ou de sei lá que apelo narcisista.

Há muito discurso, gente querendo salvar o mundo e a si mesmo, sendo prosaicos, simplórios, se esquecendo que arte é uma experiência com a linguagem e não um panfleto moral salvacionista.

Me arrisco a citar alguns poetas que acredito sérios e que têm mantido a qualidade: Duda Machado, Julio Castañon Guimarães, Armando Freitas Filho, Sergio Alcides, André Luiz Pinto, Paulo Henriques Britto, Donizete Galvão, Ruy Proença, Anelito de Oliveira, Rodrigo Garcia Lopes e Chantal Castelli.

Você já experimentou a prosa (a novela em que assume a voz de Van Gogh, contos) e, nos últimos anos, vem escrevendo poemas. Você tem modelos? O que busca em sua literatura?

Eu gostaria de ter um modelo, mas sigo a famosa frase de Picasso, “Pinte como você quiser e seja feliz” (risos).

Publiquei esparsamente alguns poemas, tenho muito receio de correr para publicar. Prefiro deixar na gaveta e enviar para alguns amigos críticos (aqueles que não têm medo de dizer que tal poema é fraco, ou razoável, ou que é passável, que é interessante ou que precisa ser pensado e melhorado).

Se eu busco algo, talvez seja escrever como um autor de música popular escreve. Lou Reed, Pat Smith, Nike Cave, músicos do Clube da Esquina, uma espécie de crônica poética da vida contemporânea.

Outro dia escrevi um poema sobre o jogo de sinuca como um momento iluminado da perfeição e da beleza. Alguns poemas sobre hotéis fuleiros e seus visitantes vivendo aventuras amorosas em quartos baratos. Às vezes estou ouvindo uma música ou lendo um romance e uma palavra desperta um poema. O início pode ser irracional, mas depois dá um trabalhinho encontrar as palavras amigas (ou inimigas). O tema pode ser qualquer um, desde que a estrutura funcione.


Seu interesse pelo erotismo é notório, em todas as suas formas. Fale um pouco desse interesse.

Creio ser um ser sensualista, encantado pela variedade das formas humanas e da natureza, como da arte e da música. Como interiorano, vivi muito próximo da natureza, sem restrições morais quanto à minha sexualidade; e a sensualidade da arte barroca na minha pré-adolescência afetou meu interesse pela tensão entre o espiritual e o carnal tão presente em suas esculturas e pinturas. E como apreciador da arte – e, depois, historiador da arte – fui educado a admirar as formas da arte que se traduzem, evidentemente, numa sensibilidade/sensualidade apurada para as formas do mundo.

Tudo isso tem relação com meu interesse pela literatura erótica (seja hetero ou homoerótica, ou seja lá o que for), pelo universo do erotismo, seja no nível imaginativo ou na realidade. E é através da arte que podemos ter experiências “virtuais” eróticas mais radicais e que dificilmente viveríamos no mundo “repressor” real.

Para além disso, creio que a arte é um intensificador da nossa sensualidade e de nossas experiências eróticas, reais ou imaginárias. O pressuposto máximo da arte é a liberdade, a ausência de qualquer restrição para a imaginação (imaginação esta que Baudelaire designava como “a rainha das faculdades humanas”).

Quais projetos pensa em desenvolver? Algum trabalho de mais fôlego sobre artes visuais ou literatura?

Tenho um livro inacabado sobre a escrita delirante de Hélio Oiticica, que retomarei em algum momento. Tenho também feito anotações sobre dois artistas que me interessam, Bispo do Rosário e Rubem Valentim. Sobre Bispo do Rosário já tenho até o título: Empenho inútil: a despoética de Bispo do Rosário. E tenho duas novelas em andamento, uma se chama Memórias eróticas e estéticas de um dramaturgo (que é livremente inspirada em Gerald Thomas – ele inclusive já leu uma primeira parte) e a outra que se chama Carmem com M, uma espécie de tragédia baseada em Carmen, de Mérimée, só que acontecendo no mundo contemporâneo. As duas têm forte apelo erótico-trágico. Estou organizando um livro de poemas, com a intenção de publicá-lo ano que vem, mas sempre que releio os poemas desanimo descrendo que aquilo possa ter valor.

Ronald Polito
Juiz de Fora, 29/1/2024

 

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