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Quarta-feira, 16/4/2025
Mario Vargas Llosa (1936-2025)
Julio Daio Borges

Mario Vargas Llosa realizou o sonho de todos os que escrevem na América Latina e se tornou, além de escritor, o que chamam de intelectual público. Uma voz ouvida, e respeitada, muito além do Peru, onde nasceu, e mesmo além da Espanha, onde morou, desfrutando do reconhecimento do Nobel - que o Brasil, com seus mais de duzentos milhões de habitantes, nunca conquistou -, e sendo membro da célebre Académie Française, o único não-francês, ou melhor, o único “non-francophone”.

Mas Vargas Llosa não foi perfeito.

Num dos meus primeiros “Digestivos”, há mais de vinte anos, eu reclamava que Vargas Llosa devia se dedicar menos à política e mais à literatura. Opinião que, depois, Diogo Mainardi secundou, em sua coluna.

E, hoje, tendo lido mais a produção de Vargas Llosa, sinto que sua literatura sofreu bastante, na comparação com a obra de outro grande latino-americano, Gabriel García Márquez. Naturalmente vão se lembrar de Jorge Luis Borges - que a Academia Sueca desistiu de premiar, após um elogio dele a Pinochet -, mas estou falando, especificamente, da geração do “boom” latino-americano (anos 60 e 70, na Europa).

Na geração subsequente, temos outro gigante - não igualmente consagrado (ainda) -, Roberto Bolaño (não confundir com Roberto Bolaños, com “s” no final, o cômico mexicano). Falo do escritor chileno, autor de “Detetives Selvagens” (1998), que nos deixou em 2003, aos cinquenta anos.

Grande autor latino-americano é quase uma contradição em termos, dado o subdesenvolvimento latino-americano; é quase uma impossibilidade histórica, dado o nosso atraso de mais de quinhentos anos; é quase um milagre, dado o nosso analfabetismo, ou semi-analfabetismo, os dois são trevosos - dada a nossa ignorância orgulhosa, rombuda e crônica.

Mas voltando a García Máquez, depois de “Cem Anos de Solidão” (1967), a situação ficou muito complicada para qualquer ficcionista hispano-americano. Se Vargas Llosa foi um intelectual público mais bem-sucedido que García Márquez (que não se desencantou com Cuba a tempo [ou em público] - ao contrário de Vargas Llosa), nunca houve um ficcionista sul-americano mais bem-sucedido (e, aqui, eu falo de sucesso mesmo, inclusive financeiro) como “Gabo”.

Depois de um almoço com um amigo escritor, em que o amigo fazia menção de querer pagar a conta, García Márquez a tomava para si, justificando: “Enquanto estávamos aqui sentados, eu devo ter vendido pilhas de exemplares de ‘Cem Anos de Solidão’, no mundo todo - enquanto que você não pode dizer a mesma coisa…”. (Essa história está em “Solidão e Companhia”, de Silvana Paternostro - ah, e o “amigo” não é Vargas Llosa.)

Quando queria chegar incógnito a uma localidade, García Márquez pedia que não o anunciassem. Passados alguns dias, porém, entediado com o anonimato, disparava: “Vamos a uma livraria! Quero ser reconhecido!”.

Do mesmo jeito que o sucesso massivo dos Beatles foi um momento único em que o gênio tomou conta do “hit parade”, a consagração de García Márquez - não como “celebridade”, não como ator de “telenovelas”, não como objeto da “política da boa vizinhança” - foi um momento único, da literatura latino-americana, que talvez nunca se repita. (Ah, e vale reforçar que Jorge Amado não ganhou o Nobel; nem Paulo Coelho vai ganhar [apesar de Bob Dylan]).

Vargas Llosa, contudo, teve uma pequena-grande participação nisso. Seu ensaio sobre “Cem Anos de Solidão” talvez seja - em termos de crítica literária - o primeiro grande reconhecimento, a primeira grande consagração do romance.

O mesmo ensaio que Vargas Llosa concordou em reproduzir na edição comemorativa da Real Academia Española, em 2007, quando “Cién Años...” completou... cinquenta anos. (E Gabo completava oitenta anos.)

Eles haviam brigado. Em 1976, Vargas Llosa havia se separado da mulher. Reza a lenda que García Márquez a teria consolado. O soco, de Vargas Llosa, terminou conhecido como “o mais famoso da literatura”. (Gabo, de olho roxo, você encontra no Google.)

Eu sempre penso que o nosso tempo é uma época muito difícil para a imaginação. O artista - o grande artista - tem de ser um pouco alienado, distanciado da realidade, distraído, até desinformado. O que, hoje em dia, é quase impossível - dada a onipresença de telas, conexões, redes, inteligências, as mais variadas...

Se na literatura de ficção Vargas Llosa não teve o mesmo sucesso que Gabo, a América Latina ganhou um grande escritor de não-ficção. Um dos maiores ensaísticas latino-americanos contemporâneos. Um dos maiores articulistas do jornalismo contemporâneo na América Latina. Um memorialista hispano-americano lido em todo o mundo. Um liberal militante - no melhor sentido de militância. Um homem de ideias - detalhe: reconhecido na França.

E se Vargas Llosa perdeu as eleições presidenciais no Peru, para Fujimori, foi para que ganhássemos não um político - pois já temos vários (até em demasia) -, mas um *pensador* político, um historiador das ideias, um biógrafo, um literato. Um “homem de letras”, na melhor tradição francesa, perdido nos trópicos, mas também perdido no tempo, uma voz quase do século XIX - um dos melhores da literatura -, em pleno século XX, em pleno século XXI...

Mesmo não tendo escrito ficção como García Márquez escreveu, não me surpreenderia se Vargas Llosa recebesse as mesmas honras de Balzac, Flaubert e Proust. Não só por ter sido um “homem público” (até na Europa) - mas, principalmente, por ter mantido acesa a chama da literatura, da grande literatura.

Numa época iletrada - e, daqui a pouco, ágrafa - como a nossa, não é pouca coisa.

Nota do Editor
Leia também "O Prêmio Nobel para Mario Vargas Llosa", "Gabriel García Márquez (1927-2014)", "Retrato de corpo inteiro de um tirano comum", "La Guerra del Fin del Mundo", "Vagas Llosa no YouTube", "García Márquez no Digestivo" e "Sou mais o García Márquez".

Julio Daio Borges
São Paulo, 16/4/2025

 

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