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Segunda-feira, 9/4/2001
Pimenta no cérebro dos outros é refresco
Paulo Polzonoff Jr

Os puristas que me perdoem, mas este Hannibal (Idem, EUA, 2001), é melhor que O Silêncio dos Inocentes, que deu origem à lenda Hannibal Lecter. Sei que em cinema há muito deste conservadorismo tacanho, que não permite que uma continuação seja tão boa quanto ou supere o primeiro filme de uma série. Qualquer pessoa com dois neurônios há de concordar comigo, no entanto, que Hannibal é, na pior das hipóteses, tão bom quanto ao primeiro.

O Silêncio dos Inocentes, um dos poucos filmes que ganharam os cinco principais Oscars, filme, direção, ator, atriz e roteiro, é um thriler muito bem dirigido, delicioso de se assistir, assustador sem ser vulgar, sem precisar abusar das cenas de nojo para entreter a platéia. Só que Hannibal, o personagem, é quase um coadjuvante na história; em certo momento estamos mais preocupados com o serial killer que amava borboletas do que com o louco canibal que ajuda Clarice Starling a desvendar o paradeiro da filha de um senador, prestes a ser morta pelo maníaco. À época, muito se falou do enfoque psicológico do filme, que fugia à pancadaria que infestava produções do gênero. Se o primeiro é um thriller psicológico, o que dizer deste segundo? Só um verdadeiro tratado de psicanálise é capaz de superá-lo.

Cinema, contudo, desperta paixões por vezes arrebatadoras e sempre irracionais. Hannibal Lecter, magistralmente interpretado por Anthony Hopkins, a quem eu jamais pediria um autógrafo por seu desempenho neste papel (convenhamos, este galês de 63 anos já deve ter experimentado ao menos um naco de carne humana!), virou lenda e, como toda lenda, tende a ser intocada. Pior para Ridley Scott, que resolveu levá-lo novamente para as telas e acabou escutando todo o tipo de absurdos da crítica ortodoxa.

Primeiro disseram que o filme não é fiel ao livro. Para ser mais exato, quiseram fazer um trocadilho besta e escreveram que o filme "come" partes do livro. Como se isso fosse um demérito. Qualquer pessoa que já tenha visto dois filmes na vida sabe que é impossível se transpor com fidelidade um livro para a tela grande. São duas linguagens diferentes que se expressam de modos diferentes. À exceção, talvez (por favor sublinhe o talvez), de A Insustentável Leveza do Ser, não conheço um filme que seja fidedigno ao livro. Talvez aquela obscura adaptação de Guerra e Paz, de Tolstói, filmada na antiga União Soviética, a mando de Stálin e que, dizem, tem mais de oito horas de duração. São, no entanto, exceções que confirmam uma regra para mim muito clara: se você quer ver um filme fidelíssimo ao livro, não veja o filme. Releia o livro. Pelo menos assim não escreverá besteiras sobre a produção.

Como escrevo esta crítica com defasagem em relação aos críticos do Rio e São Paulo (digo isto porque sei de muita gente que escreve o filme sem vê-lo, com a desculpa, esfarrapadíssima, da exclusividade jornalística), como escrevo esta crítica depois das outras, sinto-me na obrigação de refutá-las. E refutá-las exatamente pelo olhar mais demorado e refletido.

Outra coisa que se escreveu sobre Hannibal foi que o filme substitui o medo do original (olha o puritanismo aí, gente!) pelo asco. Há, sim, cenas que se podem considerar nojentas em Hannibal, mas só vomita quem tiver estômago muito fraco. Não é como O Exorcista, em que a cena de maior pavor é a do famoso vômito verde. As cenas de "asco" de Hannibal são verossímeis e plausíveis com um personagem que, a despeito de sua elegância, jamais deixou de ser um louco. Quem escreve uma verdadeira heresia (eu sei que não existem heresias em cinema, leitor; é só uma frase de efeito) como esta prefere certamente ver uma adolescente histérica gritar durante duas horas e depois colocar a lanterna na cara cheia de ranho a gastar seu tempo saboreando, com o perdão do trocadilho, este Hannibal.

O que mais nos interessa no personagem do filme é sua elegância, seu amor pelo que é requintado, pelo erudito, que contrasta violentamente com suas práticas culinárias nada ortodoxas. E Anthony Hopkins consegue transmitir todo este ar de superioridade e até mesmo de comiseração para com os demais mortais com maestria. Disse o ator que se inspirou num felino para interpretar Lecter. Nada mais elegante que um felino comendo cérebros de pessoas desprezíveis.

Não posso deixar de falar sobre a fotografia e direção de arte deste filme. Mórbida, em tons quase sempre escuros, elegante em seus contrastes luminosos, a fotografia de John Mathieson é um show à parte. É certo que Florença ajuda. Outro ponto alto de Hannibal é a direção de arte, usada para definir o bem e o mal nas figuras, respectivamente, de Lecter e Mason Verger (Gary Oldman). Sim, leitor, a uma certa altura chegamos a pensar que Hannibal Lecter é o bem encarnado, assim uma espécie de anjo vingador. Para tanto, os diretores de arte usaram um artifício bastante interessante: Hannibal é representado pela sensibilidade, pela delicadeza, pela erudição, pelo bom gosto, em suma; Verger, seu inimigo, homossexual que foi desfigurado por Hannibal, é retratado como um homem riquíssimo, mas de extremo mau gosto. Reparem na casa de Verger. Quando ele aparece em cena, notem a música que toca; sim, é clássica. Sim, é uma valsa de Strauss. Sim, é o Danúbio Azul. Intragável.

Muito se falou, ainda, sobre a substituição de Jodie Foster por Julianne Moore. Nada que produza um efeito indesejado. Pelo contrário, Moore consegue dar uma dimensão mais humana e mais feminina a Starling. Seu principal medo não é, como em O Silêncio dos Inocentes, que descubram nela a mulher frágil que realmente é; seu medo é que percebam nela uma fracassada, uma mulher destinada a ser uma garçonete de motel na Route 66, como sua mãe. Mais Freud que isso só o próprio Sigmund pode nos oferecer.

Até quem não aprecia elucubrações psicológicas, contudo, vai admirar este Hannibal. Pela fluidez com que Scott o dirige. Pelos olhos de Hopkins. Pela inversão de valores que o filme nos proporciona. Quem não torcer por Lecter e não se aperceber disso merece virar comida de javali. Se é que me entendem.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 9/4/2001

 

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