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Terça-feira, 16/4/2002 Ar do palco, ou o xadrez nos tempos da Guerra Fria Rafael Lima As exigências de camuflagem e silenciamento dos aparelhos de transmissão aparentemente não tinham sido suficientes. O aparato em que foram montadas – andaimes dos lados do placo cobertos com papel de cor neutra, com buracos apenas para as lentes da câmera – estaria gerando muito barulho ao ouvidos do ultra concentrado Bob Fischer, que simplesmente avisou que se as câmeras não fossem removidas, ele não jogaria mais, e que não havia assinado nenhum contrato o obrigando a jogar em condições desagradáveis. Schmid, treinado em Direito, retrucou que desde que começara a partida sem objeções, havia sido considerado legalmente de acordo com as regras, que previam as instalações exatamente como elas se encontravam. Mas Fischer manteve-se inflexível, ameaçando um boicote na próxima partida. Dois dias depois, nem sinal seu até a hora do jogo: Fischer trancara-se em seu quarto de hotel e parecia mais interessado no seriado Missão: Impossível do que no título mundial. Spassky chegou pontualmente, sentou-se, e aguardou Lothar Schmid disparar o relógio de seu adversário no horário programado. Às 5 e meia da tarde, com meia hora de jogo corrido – bem, corrido não é a melhor palavra: depois de cinco minutos cansado de encarar o vazio, Spassky também se levantou e foi para os bastidores, deixando uma aparvalhada malta de espectadores observando a incomum cena do ponteiro girando sobre um tabuleiro de xadrez, ocupado por dois fantasmas – o advogado de Bobby Fischer conseguiu convencer o advogado da companhia responsável por televisionar o jogo a remover as câmeras apenas por aquele jogo. Deu-se então uma corrida para tirar Fischer do hotel e leva-lo até o auditório, mas nesse ínterim passou-se um hora, exatamente o tempo suficiente para que Schimd declarasse Spassky vencedor daquela partida, por falta. O resultado deixou Fischer muito agitado, pois não conseguira o que reivindicara na hora do jogo (que seu relógio fosse zerado quando de sua chegada lá) nem antes (que as câmeras fossem removidas). Torna-se particularmente irritante o comportamento de Bobby com relação à retirada incondicional das câmeras ao se lembrar que desde o começo ele havia reclamado, além da bolsa, o pagamento de uma fração dos lucros com a transmissão para a Tv, e bem antes, que houvera colocado como restrição à realização do jogo na Islândia a baixa qualidade das transmissões televisivas daquele país. De qualquer forma, ao correr o risco de ver seu programa ir por água abaixo, os produtores providenciaram alguns ajustes para agradar Fischer; por exemplo, apenas um operador seria alocado por câmera, o qual não usaria sapatos ou carregaria moedas ou objetos chacoalhantes nos bolsos. Na noite do segundo jogo, Fischer fez chegar às mãos dos organizadores uma queixa formal relativa às condições “grosseiramente inferiores aos mínimos padrões” de um jogo pela disputa do título mundial. A resistência de Fischer incomodava muita gente, dos organizadores que não sabiam o que fazer se ele insistisse em faltar os jogos – como dividir a bolsa? – passando pelos freqüentemente insultados operadores de câmera, pelo dono dos direitos de transmissão, que sentia lesado, até Boris Spassky, à essas alturas chateado com atrasos e adiamentos, sem mostrar o bom humor dos primeiros dias – o que fortalecia a teoria da guerra de nervos. Mas o padre William Lombardy, segundo de Fischer (uma espécie de sparring de enxadristas, responsável por incentivar o desafiante, treiná-lo, e passar a noite analisando as possibilidades de jogos interrompidos por motivos de tempo), bolou uma solução hábil: iniciar uma campanha de telegramas a partir dos Estados Unidos, pedindo para Fischer ir jogar e representar seu país. O resultado foi volumosos o suficiente para alterar o humor do jogador, em particular, um telefonema especial: de Henry Kissinger. Preocupado em tocar o campeonato, Lothar Schimd também buscou atalhar uma solução ao alterar o local da próxima partida para uma salinha de ping pong, sem auditório e sem equipamentos além das com câmeras de circuito interno, contra as quais Fischer não tinha objeções. No que foi posteriormente analisado como um erro, Boris Spassky aceitou a transferência, e a terceira partida acabou sendo realizada na salinha de ping pong, com o mesmo tabuleiro de mármore italiano cinza e ardósia verde islandesa. Fischer apareceu com seu atraso habitual – sempre atrasava, ou porque estava escolhendo um paletó, ou porque esquecera uma caneta para escrever suas jogadas na ficha, ou porque tinha que levar comida – passou um tempo fiscalizando as câmeras de circuito interno, e finalmente sentou-se para jogar. No movimento mais incomum, o 11º, Fischer tirou da cartola mais uma de seu repertório de jogadas inusitadas, ilógicas e inesperadas, ao colar seu cavalo na lateral do tabuleiro. Nada coloca um mestre em maior desconforto do que ver seu oponente admitir uma variação aos movimentos de uma abertura ou uma defesa clássicas, por exigir dele maior tempo de análise das possibilidades e busca na memória de alguma situação similar. Como freqüentemente inovava em seus movimentos, Fischer ainda levava a vantagem do tempo a pressionar Spassky, que ao esquentar os miolos imaginando porque Fischer fizera aquilo, fazia seu relógio correr. O posicionamento do cavalo na lateral do tabuleiro é especialmente inesperado porque, na ausência de impedimentos, um cavalo pode se mover para 8 posições diferentes, e, na lateral, apenas 4, limitando deliberadamente seu raio de ação. A partida acabou com o abandono de Spassky, na primeira vitória de Fischer do torneio. Até quando o fato de estar dois pontos atrás abalaria a disposição de Fischer? Até quando a confiança de Spassky havia sido traída por aquela derrota? Com o retorno das partidas ao auditório original, no quarto jogo, questionamentos como esses passaram a ser o foco das atenções, demonstrando que, finalmente, o centro da disputa voltara para o tabuleiro de xadrez, mais do que qualquer injunção política ou financeira. Novos ajustes foram feitos para deixar o equipamento de transmissão praticamente imperceptível, com sucesso, afinal Fischer ficaria furioso ao saber que o 8º jogo havia sido filmado apesar de suas restrições... Os advogados que representavam a rede de televisão, demonstrando a completa exasperação de seus contratados, prometiam processar Fischer, arrancando-lhe “cada centavo possível”. Ar do palco Mas o urso das estepes não se daria por vencido tão cedo, e no 11º jogo conseguiria que Fischer abandonasse o jogo, reduzindo a vantagem de 3 para 2 pontos, num placar de 6 ½ a 4 ½. Eram apenas 2 pontos, ou seja, duas vitórias, e daí para a frente poderia jogar pelo empate até fechar os 12 pontos que lhe garantiriam a permanência do cinturão. Só que no 12º jogo, Fischer estendeu por várias jogadas uma situação de igualdade que poderia ter sido declarada por Schimd como empate bem antes, talvez... cansando Spassky, valendo-se da diferença de 6 anos de idade entre eles. Enquanto isso, continuava com suas intermináveis declarações contra as condições de jogo inadequadas, contra o ruído que o público fazia no auditório, com a ineficiência do árbitro alemão, que se limitava a iluminar o aviso de SILÊNCIO, sem maiores medidas disciplinadoras e assim por diante. Nada que abalasse a disputa, em pleno curso naquele momento. Durante a 17º partida, um empate que levou o placar para 10 a 7 (aproximando perigosamente Fischer dos 12 ½ pontos) os russos acusaram os americanos de estarem usando “dispositivos eletrônicos e uma substância química” para enfraquecer Boris Spassky. A cadeira de Fischer, a mesma cadeira giratória em cromo e couro que Fischer usara contra Petrosian, na Argentina, e a iluminação especialmente instalada e verificada pelos contestantes foram mencionados, e o jogador norte-americano foi acusado de usar meios psicológicos para “desbalancear o Sr. B. Spassky e fazê-lo perder seu espírito de lutador”. Era um daqueles momentos nem tão raros da Guerra Fria em que qualquer, mas qualquer coisa mesmo!, era válida para provar que o nosso lado é melhor do que o deles, e o senso de ridículo é o primeiro a ir para a sarjeta. Schmid não quis saber de dar mole para malandro e mandou investigar timtim por timtim: revirou de cima para baixo as cadeiras no Raio X, e nada. Submeteu amostras à análise química, sem detectar nenhuma anomalia. Procurou no equipamento luminoso – e enfim encontrou uma prova: duas moscas mortas. O ponto alto do show foi quando um químico adentrou o local, sacudiu um saco plástico na sala de jogo, e em seguida selou-o, escrevendo numa etiqueta: “Ar do palco”. Para não perder o hábito, enquanto isso, Fischer exigia a remoção das sete primeiras fileiras de cadeiras, pedido imediatamente recusado pelos soviéticos, que procuravam qualquer meio para enfraquecer o que já assumia ares de inevitável. Inevitável nessa altura, porque todas as chances anteriores de bloquear o andamento ou recusar-se a jogar haviam sido desperdiçadas; tivesse Spassky se recusado a colocar o título em disputa quando Fischer não apareceu para a cerimônia de abertura, feito as malas e voltado para a Rússia, poucos se atreveriam a acusá-lo de fujão, mau perdedor ou seja o que fosse, e assim inúmeras outras concessões que agora soavam como prejuízo. Fischer escapava das armadilhas de Spassky a cada jogo, conduzindo-o habilmente para empates a lhe somar meios pontos, que no final de uma série amealhariam inexoravelmente a vitória definitiva. Foi assim no 18º, 19º e 20º jogos, apesar do duro ataque do russo no último. A um ponto ou 4 partidas do encerramento, muitos islandeses já tinham recolhido o dinheiro das apostas e fechado uma explicação convincente para a mágica dos movimentos de Fischer, que punha em parafusos os soviéticos. Elfos. Spassky teria insultado ou ofendido os elfos em algum momento de sua estadia islandesa, ou durante o jogo. Mais ou menos como com o Saci Pererê em algumas cidades do interior do Brasil, os islandeses também acreditavam na capacidade de retaliação dessas criaturinhas quando importunadas, ou quando não tem seus desejos satisfeitos, sob pena de má sorte, dor de cabeça, ou mesmo... desastre. O aeroporto de Akureyri, por exemplo, teve inúmeros problemas durante sua construção, problemas que pareciam não cessar em surgir, e dizia-se que, por ter sido construído próximo das moradias dos elfos, importunando-lhes, sofria suas retaliações continuamente. Teria sido feito então, um acordo com o elfo-chefe, interrompendo as obras por um ano, até que os elfos encontrassem um novo lar. O aeroporto, pôde, enfim, ser concluído. Do mesmo modo, Spassky devia fazer alguma reparação aos elfos que houvera ofendido, provavelmente os mesmos elfos com quem Fischer deve ter cruzado numa madrugada voltando da Base Militar Norte-americana (onde ia jogar boliche), e feito um acordo várias semanas antes... Epílogo: 30 anos ontem à noite Fischer acabou ganhando a 21º partida, a que lhe garantiu os pontos e o título mundial. Spassky retornou para a Rússia, onde ficou por mais alguns anos, até se mudar para a França, onde ainda mora, com sua família, agora cidadão francês. De acordo com as regras da FIDE, três anos depois, em 1975, o campeão era obrigado a colocar o título em jogo. Na verdade, Fischer já dera inúmeras declarações muito antes de ganhá-lo afirmando que quando o título fosse dele não esperaria os 3 anos regulamentares; colocaria o título em jogo uma vez por ano, sempre em algum lugar especial cobrando bolsas caras. De certa maneira, ele queria fazer com o xadrez o mesmo que Mohamad Ali fizera com o boxe: popularizá-lo, divulgá-lo pelo mundo, elevando os lucros dos esportistas. Mentalidade de empresário ou não, o impacto de Fischer foi, dentro das proporções, como o impacto de Michael Jordan no basquete: houve um bum na venda de livros, revistas e tabuleiros de xadrez nas lojas de departamento norte-americanas em meados dos anos 70, além do crescimento do número de jogadores de xadrez em seu país. Mas Fischer acabou não capitalizando seu sucesso, não jogou xadrez num estádio em Las Vegas uma vez por ano, e continuou na sua vida de nômade fugitivo, nos anos que se seguiram ao confronto. Não disputou o título em 1975 porque a FIDE recusou-se a cumprir todas as exigências de sua infindável lista, tomando-lhe a faixa (como Mohamad Ali) e entregando-a ao desafiante, o russo Victor Korchnoi. Em 1981, foi preso por engano, confundido com um meliante, por vagabundagem, na prisão de Pasadena, onde passou 2 dias e recontou o episódio num folhetim que acabou se tornando uma raridade entre seus fãs, "I Was Tortured in the Pasadena Jailhouse!", com passagens que não devem nada à certas delegacias terceiro mundistas. Entre 1980 e 1990, foi visto em vários lugares do mundo, tendo sido localizado em lugares tão diferentes como Japão, Filipinas, Praga, Hungria, Pasadena (Califórnia) e até no Brasil, sempre fugindo de jornalistas, sempre morando na casa de amigos enxadristas cada vez mais raros, porque bania de suas relações qualquer um que repassasse mínimas informações acerca dele. Mandou retirar todas as obturações de seus dentes por receio dos russos transmitirem raios que interfeririam em seu cérebro de através das peças de metal em sua boca, e continuou fazendo declarações anti-judaicas, como em toda sua vida. Em 1992, foi convidado por um milionário iugoslavo chamado Vasiljevic que oferecera a bolsa de U$ 5 milhões para reprisar o jogo de 20 anos antes (a ser dividida entre vencedor e perdedor), numa melhor de 10 contra Boris Spassky, na ilha de Sveti Stefan, de sua propriedade, comprada do governo montenegrino por U$ 570 milhões. Como nessa época desenrolava-se o conflito na Bósnia, qualquer americano havia sido proibido de realizar negócios com a Bósnia e Montenegro, e Fischer recebeu ordem de prisão do governo norte-americano por ter ido para a Iugoslávia. Sua reação foi uma cusparada sobre a ordem de prisão, em coletiva para a imprensa antes do jogo: "Essa é a minha resposta". Boris Spassky ficou muito contente de ter saído do esquecimento e ganhar alguns milhões de dólares para perder para Fischer, pois reconhecia-se fora de forma há muito tempo. Fischer acabou vencendo um jogo que não se notabilizou pela técnica nem pela solenidade, já que ambos os enxadristas podiam ser vistos rindo e falando ao longo das partidas. Em 2001, fez declarações em uma rádio filipina apoiando o atentado de 11 de setembro sobre as torres do World Trade Center: “... todos os crimes que os E.U.A. cometeram no mundo. Isso só mostra que o que vai, volta, mesmo em relação aos E.U.A. Eu aplaudo o ato...” Na mesma época, surgiu um rumor na internet de que Fischer havia voltado a jogar xadrez anonimamente, com pseudônimo via Internet Chess Club. O rumor partiu da entrevista de um jogador inglês que disse ter sido apresentado a um exímio enxadrista anônimo, por quem foi rapidamente derrotado, e com quem trocou algumas palavras. Segundo ele, o enxadrista revelara informações que só poderiam ser do conhecimento de Bobby Fischer (ou, pelo menos, de algum fã seu). Seu paradeiro atual é ignorado. :::: Para ir além >> A melhor reportagem sobre a disputa do século está no livro Fischer/Spassky: The New York Times report of the chess match of the century, de Richard Roberts, Harold C. Shonberg, Al Horowitz e Samuel Reshevsky, editado pela Bantam Books em 1972. >> Fischer inspirou um filme no qual aparece como referência, Searching for Bob Fischer. >> BobbyFischer.Net é o melhor repositório de informações sobre ele na internet, incluindo um tributo animado em flash e uma seleção das 100 melhores partidas, para serem acompanhados movimento a movimento na tela. >> Internet Chess Club, para quem quer se arriscar a esbarrar (virtualmente) no ex-campeão. Rafael Lima |
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